Uma certa tendência para fazer “tempestades num copo de água”, como um dia assumiu no programa Maluco Beleza, de Rui Unas, deixava-o desconfiado da sua capacidade para ser treinador de futebol. Aos 32 anos, já retirado das lides de jogador, Rúben Amorim dizia-se tentado a experimentar. O Casa Pia, do terceiro escalão, haveria de proporcionar-lhe a oportunidade, na época 2018-2019, e ele não tardou a exibir a costela de Adamastor. Ao fim de dois jogos e de duas derrotas como técnico estagiário, agitou as águas. “Comecem a pensar em treinadores. Se perder outra vez, vou-me embora”, comunicou aos dirigentes do clube lisboeta, incrédulos com um ultimato que consideravam totalmente precipitado.
Teimoso como é – “daqueles que acreditam muito em si próprios e raramente falham”, aos olhos de quem privou com ele em Pina Manique –, o mais provável era ter batido com a porta, caso tivesse somado novo resultado negativo. Acontece que a equipa reagiu com uma goleada (4-0 ao Pinhalnovense) e arrancou para uma sequência de seis vitórias consecutivas, a bonança de que Amorim precisava para afastar os maus presságios.
“Ele fica danado com as derrotas”, avança Vítor Franco, presidente do Casa Pia. “Quando estávamos a perder ao intervalo, aquilo ficava quentinho no balneário”, recorda, entre risos. “O Rúben é muito ativo e, se for preciso, dá um pontapé numa porta ou utiliza um vocabulário mais forte, palavrão para aqui, palavrão para acolá.”
Nada a que os jogadores não estejam habituados. “A diferença é que ele não grita para chatear; ele grita para corrigir, porque tem a noção daquilo que pode pedir a cada um e nunca pede o impossível”, esclarece Miguel Bandarra, um jovem extremo que o treinador levou para o Casa Pia e que atua, agora, na Liga principal, ao serviço do Farense. “Há jogadores mais calmos que precisam de um estímulo mais agressivo e há outros que são mais explosivos e precisam de acalmar. Como terminou a carreira de jogador há pouco tempo, Rúben Amorim sabe como lidar com as diferentes personalidades”, elogia o antigo pupilo, nada surpreendido com a ascensão meteórica do técnico – do Campeonato Nacional de Seniores ao topo do futebol português, em três anos, não é só líder incontestado com o Sporting como tem uma vantagem em relação aos rivais que não se via há 70 anos em Alvalade.
“Se o Rúben se atirasse a um poço…”
Mais do que as vertentes física, tática e técnica do jogo, Rúben Amorim concluiu, ao longo da carreira de jogador, que o sucesso de um treinador passava, sobretudo, por ser um exímio gestor de recursos humanos. No Casa Pia, já saltava à vista a preocupação de equilibrar os dois pratos da balança, o do trabalho sério e o da relação de proximidade com o plantel. “Uma coisa é ele ser exigente com um sorriso nos lábios; outra seria estar ali como o patrão daquilo tudo. Ele é patrão e é amigo, é o chefe mas também é mais um no balneário”, nota Vítor Franco, enaltecendo-lhe a capacidade aglutinadora, sem olhar a nomes nem a idades: “Os jogadores esfolavam-se todos pelo Casa Pia e, como eu costumava dizer na brincadeira, se o Rúben se atirasse a um poço, eles iam atrás.”
No desporto, é sabido que os bons resultados facilitam a coesão de um balneário, mas o treinador de 36 anos investe muito por conta própria. A fama de animador de serviço, conquistada nos clubes por onde passou enquanto futebolista (Belenenses, Benfica e Sp. Braga), não pode ser replicada nas novas funções, por razões óbvias, o que não quer dizer que tenha de ser enterrada para todo o sempre. “Ele é muito inteligente e gosta de quebrar o gelo. No momento certo, principalmente no final do treino ou durante o aquecimento, é capaz de mandar uma piada e pôr toda a gente a rir no grupo”, conta Miguel Bandarra.
Um hábito que adotou no Sporting e que já incentivava no Casa Pia é o “corredor de calduços” a que todos os aniversariantes devem sujeitar-se. Quando chega o dia de anos, é imperativo passar entre os colegas de equipa para o “cumprimento” da praxe, à imagem da receção de boas-vindas com que são brindados os reforços. No passado dia 27 de janeiro, ao celebrar o 36º aniversário, Rúben Amorim não se livrou de oferecer o lombo às palmadas alheias.
Quim não esconde a surpresa por ver o amigo vingar na pele de treinador. Afinal, no Benfica e no Sp. Braga, o antigo guarda-redes habituou-se a conviver com um tipo descontraído, de uma alegria contagiante e preocupado em retirar a pressão dos companheiros antes dos jogos. “Toda a gente gostava dele, tanto brincava com um miúdo dos juniores como com o Luisão. Onde ele estava, havia alegria, e estes resultados também são fruto da pessoa fantástica que ele é”, sublinha o ex-companheiro de equipa. “Mas se me perguntasse, quando jogava com ele no Benfica, se achava que ele ia ser treinador, eu torcia um bocadinho o nariz. Mas tem demonstrado ser um treinador de grande qualidade, e a sua personalidade, ao contrário do que eu pensava, tem-no ajudado neste início de carreira fantástico”, admite. À distância, Quim apercebe-se da forte ligação que Rúben Amorim, benfiquista assumido, estabeleceu com o plantel no Sporting, “meio caminho andado para o sucesso”.
Dentro do balneário da Luz, tornaram-se célebres as imitações do empresário Jorge Mendes e do técnico Jorge Jesus que, entre Belenenses e Benfica, o orientou durante sete temporadas. Mas a sua veia cómica tornou-se mais conhecida com as “reportagens” que protagonizou para a BenficaTV. No regresso de Turim, após a eliminação da Juventus nas meias-finais da Liga Europa, na época de 2013-2014, o “repórter” Amorim entrevistou quase todo o grupo de trabalho no avião. Dos fisioterapeutas ao chefe de cozinha, passando pelos técnicos de equipamentos e Jorge Jesus, poucos lhe escaparam. Algumas das tiradas: “Enzo Pérez, como é que vamos ganhar uma final europeia sem ti? Ah, estou cá eu, não é?”; “Nico Gaitán, o jogador mais talentoso do plantel a seguir a mim…”; “Maxi, com tanta gente expulsa nos jogos do Benfica, como é que tu ficas sempre em campo?”. Ao nutricionista, aplicou talvez o golpe mais baixo: “E para a celulite, o que se pode fazer?”.
Um jejum que pesa
O primeiro treinador a lançar Rúben Amorim a titular, num jogo da divisão principal, recorda-se de “um miúdo feliz, de bem com a vida”, que “treinava com alegria e nunca causou problemas”. Aos 19 anos, estreava-se pelo Belenenses frente ao Benfica, pela mão de Augusto Inácio que agora lembra como ele se aproxima, cada vez mais, de quebrar um jejum que dura há precisamente 19 anos. Com dez pontos de avanço sobre o FC Porto, 11 sobre o Sp. Braga e 13 sobre o Benfica, o Sporting tem caminho aberto para voltar a festejar o título de campeão que lhe foge desde 2002. Nunca uma vantagem tão ampla foi desperdiçada na história do campeonato, mas nem assim Amorim assume a candidatura ao título.
“Faz muito bem em não assumir”, apoia Inácio, o homem que acabou com a anterior travessia do deserto do clube, em 2000. “Já basta o peso de 19 anos sem serem campeões. O selo de candidato ao título pode perturbar e assim como está é que está a dar resultado”, argumenta, ele que foi uma das vozes críticas dos 10 milhões de euros investidos no atual treinador, mas apenas por causa da débil situação financeira dos leões, clarifica. “Este Sporting não é o dedo nem a mão nem a cara do Rúben Amorim. É o corpo todo”, ilustra, rendido a uma “primeira volta extraordinária” que uniu os adeptos do clube: “Não tenho dúvida de que toda a gente está ao lado do treinador e desta equipa.”
Amorim atribui o mérito aos jogadores e, cauteloso, não se cansa de repetir que, no futebol, tudo muda de um dia para o outro. O que não se altera é o sistema tático, outra marca de singularidade do treinador. Desde que apostou em jogar em 3x4x3, ao fim de meia dúzia de jogos no Casa Pia, que se tem mantido fiel à ideia. Embora pouco convencional no futebol português, trouxe-lhe frutos, também, ao comando do Sp. Braga B e do Sp. Braga, onde registou uma trajetória fulgurante, com triunfos sobre os chamados três grandes, dois sobre FC Porto e Sporting e um sobre o Benfica.
Os seus adjuntos têm sido outro garante de estabilidade e não deixam de surpreender. Adélio Cândido, 24 anos, e Carlos Fernandes, 26, são ainda mais jovens e acompanham-no desde o primeiro dia no Casa Pia, quando nem salário recebiam. Carlos Pires, o então diretor-desportivo, juntou-os para um projeto de terceira, até que a Federação Portuguesa de Futebol castigou Rúben Amorim por dar instruções para dentro de campo, em violação das regras para estagiários. Faltava-lhe o curso para poder exercer o cargo na sua plenitude e acabou por apresentar a demissão.
Esse percalço está agora em vias de ser ultrapassado, com a frequência do curso de Nível IV, exigido no futebol profissional. Uma a uma, as dúvidas vão ficando pelo caminho, à medida que crescem as certezas. A afirmação no Sporting segue de vento em popa, longe de tormentas. Não faltará muito para começar a deixar saudades em Alvalade, como acontece em Pina Manique. “A malta ficou muito abalada com a saída dele. Sob o ponto de vista humano, passe a expressão, o Rúben é um gajo porreiro”, atira Vítor Franco, antes de soltar uma gargalhada que dura e dura e dura…
Carreira
Rúben Filipe Marques Amorim
36 anos
Natural de Lisboa
Clubes que representou como jogador, ao nível sénior:
• Belenenses
• Benfica
• Sp. Braga
• Al-Wakrah (Qatar)
337 jogos, 18 golos
Clubes que treinou:
• Casa Pia
• Sp. Braga B
• Sp. Braga
• Sporting
Palmarés
Rúben Amorim conquistou dez títulos como futebolista e dois como técnico
Jogador
Benfica
Liga portuguesa (09-10, 13-14 e 14-15)
Taça de Portugal (13-14)
Taça da Liga (08-09, 09-10, 10-11, 13-14e 14-15)
Supertaça (2014)
Sp. Braga
Taça da Liga (12-13)
Treinador
Sp. Braga
Taça da Liga (19-20)
Sporting
Taça da Liga (20-21)
Liga Portuguesa (20-21)