Gosto de andar por Lisboa. Mas num dia como o de hoje, em que a cidade recebe a final da Champions League, e duas equipas espanholas rivais do Estádio da Luz, prefiro, como a maioria dos lisboetas, o sossego da minha casa.
Sair à rua implica cruzar-me com imensos autocarros cheios de adeptos, ver na rua diversos turistas de camisolas de nylon e cachecóis alusivos aos clubes de Madrid, alguns de “bocadillo” na mão ou fazendo “botellon” logo pela manhã.
Evito, por isso, as zonas mais “quentes”. Admiro-me quando recebo uma sms da minha mãe, recém-operada ao joelho e completamente desinteressada das lides futebolísticas, anunciando que estava no Terreiro do Paço a “ver a animação”. Durante a tarde, vou tendo notícias de amigas que me relatam as suas experiências com os espanhóis com quem se cruzam. No Facebook, o tema é Lisboa e a confusão instalada. E eu no recato do meu sofá, enquanto os meus filhos “estudam” para os últimos testes do ano.
Nem tudo é futebol
Mas, profissão oblige, há que sair deste torpor, para me imiscuir no meio dos adeptos, em frente a um ecrã gigante. É assim que venho parar à esplanada do Príncipe Real. Pelo caminho, vou registando no meu bloco como os caixotes do lixo estão cheios, como há garrafas de litro de cerveja pousadas nos muros da cidade e como as eleições europeias de domingo passaram para um plano quase nulo.
No Príncipe Real, o parque infantil está vazio. O sol está baixo e o vento começa a tornar-se antipático. O Quiosque do Refresco não tem quase ninguém. O outro, no extremo oposto do jardim, também virou uma televisão para a esplanada. Mas ali quase só se fala português.
Passa um bando de jovens que nas mãos leva balões vermelhos em forma de coração. Entram em três tuk-tuks, decorados com autocolantes da Champions. Explicam-me que não têm nada a ver com o jogo – apesar de a partida estar quase a começar – que se trata de uma despedida de solteira. Antes de arrancarem para uma noite 100% feminina, o motorista de um dos carros da Eco Tuk Tours ainda me conta que de manhã teve outro tipo de serviço: transportou (ele e mais 35 veículos do mesmo género) cerca de mil convidados da marca de cerveja que patrocina a final, entre o Jardim do Tabaco e as Portas do Sol.
Seguranças à paisana
É essa mesma marca que levou para a esplanada o ecrã gigante onde vou ver o jogo. E mais os cartazes (“Prepara-te para a final”) e um posto de venda de imperiais. Enquanto corta limas para as caipirinhas, Edson Yazejy, 32 anos, o proprietário daquele restaurante, conta-me que são um dos sete embaixadores daquela cervejeira holandesa. Duas promotoras, na casa dos vintes, estão de tablet na mão e vão tirando fotos da animação que vão diretamente para o Facebook. Hão de ser alvo de vários engates, à medida que o barril da cerveja se esvazia, por parte dos espectadores portugueses, menos interessados no resultado do marcador.
Há 74 cadeiras cá fora e 34 lá dentro. Estão todas ocupadas e ainda há gente de pé. Fazendo as contas aos que se sentam no chão e nos troncos das árvores centenárias, posso arriscar nas três centenas de pessoas que, indiferentes ao frio, ali ficaram até ao final do prolongamento. Não foi por acaso que toda a equipa, de 15 pessoas, foi convocada.
Passam tabuleiros com imperiais portuguesas, mais baratas. Mas ainda antes do intervalo, os cinco barris esgotam-se – vantagem para a marca holandesa. E passam também muitas tostas e alguns chouriços em brasa. Vejo menos os petiscos que Edson preparou para esta noite e que serviram de tubo de ensaio para o mundial: tortilha, pimentos padrón ou asinhas de frango.
Por todo o restaurante, há adeptos dos dois clubes, ainda em ameno convívio. Eles não sabem, mas andam por ali seguranças à paisana, pode o diabo vir a tecê-las. Quando acabar o jogo, as cadeiras de ferro e algumas mesas hão de ser rapidamente retiradas, porque podem ir pelo ar, em jeito de festejo.
A confusão faz parte
Ao intervalo, o Atletic ganha por um golo. E os seis amigos de Madrid, com idades entre os 27 e os 35 anos, que chegaram, na sexta-feira, a uma casa na Costa da Caparica, estão bem animados. Mas ainda têm muito para sofrer. Ainda visitaram o castelo, o Bairro Alto e Baixa. Hoje, tiraram o dia para a festa, para comer e beber. “Passarlo bién”. Gonzalo Pereira, 27 anos, já conhecia a cidade e fez de cicerone. Os outros gostaram muito do que viram.
Juan Antonio, 36 anos, não está com eles. Nem podia: tem vestida a camisola branca de Cristiano Ronaldo, que por enquanto está escondida debaixo de um casaco, porque está frio. Depois de deixar um amigo que tinha bilhete no estádio, meteu-se no autocarro rumo ao Terreiro do Paço. Entretanto, viu este ecrã e apeou-se. Já vai no terceiro balde de cerveja, mas está sossegado e esperançado na vitória. Quando o jogo acabar, irá para a festa. Não conta dormir, até porque não tem onde. De manhã, apanhará a sua bicicleta e pedalará até Santiago de Compostela…
Inês Lima, 30 anos, estava em casa, ali mesmo no Príncipe Real, a ver o jogo. Mas a sua cadela Maria Cookie, obrigou-a a um passeio forçado no jardim. “A confusão já começou ontem, com muito barulho e carros mal estacionados.” Nem por isso se importa muito – “faz parte, mas vamos ver como se comportam esta noite…”
Ir de ‘fiesta’
Nos últimos minutos do jogo, os seis amigos estão abraçados, a cantar o hino, prestes a celebrar a vitória. Juan mantém-se sossegado, no seu cantinho, de óculos na cabeça, esquecidos de uma tarde de sol. Mas eis que, já nos descontos, um golo do Real transforma o resultado e leva o jogo a prolongamento. É a euforia na esplanada. “Estoy muy nervioso”, confessa Juan. Os amigos separam-se e ganham uma expressão de enterro. Há um homem que chora de bêbado, ao balcão. Já vai longo o prolongamento, quando o segundo golo do Real faz com que Juan se levante de um salto e cante a música do seu clube. Sem sonhar que, poucos minutos mais tarde, Ronaldo marcaria um penalti que resolveria, de vez, a final.
Os seis amigos de Madrid saem de fininho. Juan despe o casaco preto e fica em manga curta, para que todos vejam que veste a camisola do seu ídolo. Pede outra cerveja, mete conversa com um adepto, telefona ao amigo no estádio e avisa: “Ahora voy de fiesta.” Seguramente, não estará sozinho.