Alexandre O’Neill: “Faço uns versos, não os tomo muito a sério”

Alexandre O’Neill: “Faço uns versos, não os tomo muito a sério”

Coloque-se o homem ao espelho:

“– Patriazinha iletrada, que sabes tu de mim?

– Que és o esticalarica que se vê.

– Público em geral, acaso o meu nome…

– Vai mas é vender banha de cobra!

– Lisboa, meu berço, tu que me conheces…

– Este é dos que fala sozinho na rua…

– Campdòrique, então, não dizes nada?

– Ai tão silvatávares que ele vem hoje!

– Rua do Jasmim, anda, diz que sim!

– É o do terceiro, nunca tem dinheiro…

– Ó Gaspar Simões, conte-lhes Você…

– Dos dois ou três nomes que o surrealismo….

– Ah, agora sim, fazem-me justiça!

– Olha o caixadòclos todo satisfeito a ler as notícias…”

Retirado do livro Feira Cabisbaixa (1965), este arremedo biográfico era uma picardia ao Portugal vestido com os cinzentismos provincianos do Estado Novo, e indiciava a feroz independência de Alexandre O’Neill. De quê? De quase tudo: da “importanticidade sumamente ridícula” dos homens de letras seus contemporâneos, das escolas poéticas, do bom comportamento exigido ao menino de sangue aristocrático, da convencionalidade burguesa fintada por quem casou duas vezes com roupa de segunda-feira mas desejou muitas mulheres por Lisboa fora, da “pequena dor à portuguesa/ tão mansa quase vegetal”. E até do medo, esse papão dissecado n’O Poema Pouco Original do Medo, incluído no livro Abandono Vigiado (1960): “O medo vai ter tudo/ pernas/ ambulâncias/ e o luxo blindado/ de alguns automóveis/ Vai ter olhos onde ninguém os veja/ mãozinhas cautelosas/ enredos quase inocentes/ ouvidos não só nas paredes/ mas também no chão/ no teto/ no murmúrio dos esgotos/ e talvez até (cautela!)/ ouvidos nos teus ouvidos (…).” Razões substantivas para a citação incontornável: o O’Neill era “uma coisa em forma de assim.”

“Sofre de ternura, bebe demais e ri-se”

O centenário do seu nascimento, assinalado nesta quinta-feira, 19, é um convite para o reencontro com o poeta inclassificável, todo “coração acordeão” e ironia-ponta-e-mola: “E se fossemos rir,/ Rir de tudo tanto,/ Que à força de rir/ nos tornássemos pranto…”, larga ele em No Reino da Dinamarca (1958). Um escriba que espreitava o “espetáculo das pessoas” desde miúdo. “Ele achava piada às pessoas para lhes tirar coisas. E tirava mais depressa de um homem simples que conta histórias da vida dele do que de um advogado sentado no restaurante a comer uma lagosta. Ele já sabia o que o advogado ia dizer! Mas dum homem simples não sabia.” Palavra da cineasta Noémia Delgado (1933-2016), primeira mulher de Alexandre O’Neill, entre 1957 e 1971, cujo namoro começou quando o poeta, tímido, sério, lhe apareceu em Colares com uma caixinha de cortiça e a dizer para “ela tomar uma decisão.” Lá dentro, luzia uma pistola de brincar prateada. Estava encontrado o homem da sua vida, diria Noémia. Em Alexandre O’Neill – uma Biografia Literária, a biógrafa e investigadora Maria Antónia Oliveira explora uma eventual tentação surrealista na maneira de ele olhar para o quotidiano, transfigurando-a assim: “Fez sua a frase de Baudelaire: ‘Há lá coisa mais excitante do que o lugar comum?’” E sublinha: “Certo é que críticos, biógrafos, teóricos e explicadores da obra nunca o entusiasmaram; impacientava-se com os labéus que se lhe colavam e se tornavam rapidamente o lugar-comum de cada vez que se falava da sua poesia: ele era o ‘crítico desapiedado dos costumes’, o ‘poeta satírico’, até mesmo ‘um tipo com graça’.”

O’Neill virava as costas a estes rodriguinhos. E tirou da manga um outro Auto-Retrato:

“O’Neill (Alexandre), moreno português,

cabelo asa de corvo; da angústia da cara,

nariguete que sobrepuja de través

a ferida desdenhosa e não cicatrizada.

Se a visagem de tal sujeito é o que vês

(omita-se o olho triste e a testa iluminada)

o retrato moral também tem os seus quês

(aqui, uma pequena frase censurada…)

No amor? No amor crê (ou não fosse ele O’Neill!)

e tem a veleidade de o saber fazer

(pois amor não há feito) das maneiras mil

que são a semovente estátua do prazer.

Mas sofre de ternura, bebe demais e ri-se

do que neste soneto sobre si mesmo disse…”

“Desimportantizar”

O sempre afetuoso António Alçada Baptista (1927-2008), cinzelou-o assim no volume Pesca à Linha – Algumas Memórias: “Julgo que nenhum poeta contemporâneo foi como ele capaz de captar com mais subtileza o halo poético do quotidiano, o estofo lírico-épico-dramático que está por baixo da banalidade dos dias. Mesmo os seus poemas que parecem circunstanciais têm implicações perenes pela necessidade de detetar o que há de essencial no acontecimento que parecia fugaz. Com isso atingia o âmago das situações comuns, cujo enigma não foi desvendado: a morte, o amor, o medo, a Pátria, a palavra.” A “pluma caprichosa” amparou sempre O’Neill, mas não foi a poesia a pagar-lhe a renda de casa, as contas da “vidinha”, os pullovers prontos a enrugar e os icónicos óculos de massa agigantados no nariz, os muitos copos bebidos, a coleção de cerâmica e garrafas bonitas, os tantos volumes que arrumava na biblioteca ciclópica do apartamento ao Príncipe Real, última casa onde viveu em Lisboa. O seu primeiro ofício seria o de escriturário na Caixa de Previdência dos Profissionais do Comércio, arrumando balanços em papeladas mortas – ironicamente, recorda a sua biógrafa, viveu os anos surrealistas afundado em burocracia.

Grande plano O “caixadòclos” Alexandre O’Neill apanhado pelo fotógrafo Nuno Calvet em 1958

“Julgo que nenhum poeta contemporâneo foi como ele capaz de captar com mais subtileza o halo poético do quotidiano, o estofo lírico-épico-dramático que está por baixo da banalidade dos dias”, disse o amigo e escritor
Alçada Baptista

Depois, haveria de ser também crítico de televisão no Diário Popular com o pseudónimo de A. Jazente, de escrever para teatro e cinema, jornais e revistas, de tentar a traição da tradução até quando não dominava assim tão bem os idiomas, de elaborar prefácios e antologias, e até alinhavou letras para fado. “O fado é que dá dinheiro, não é como a literatura”, disse, com o grão provocador ali a batucar. Amália cantou-lhe os versos escritos para Gaivota, em 1969, até a voz lhe doer. Mas seria, sobretudo, a publicidade a sustentá-lo: O’Neill trabalharia como copy, a partir da década de 1960, assinando refrões publicitários célebres como o quase musical “Há mar e mar, há ir e voltar”, burilado para uma campanha de prevenção contra o afogamento nas praias portuguesas. Em conversa com o jornalista, escritor e também exímio malabarista de palavras Fernando Assis Pacheco (1937-1995), o poeta recordaria, nas páginas do Jornal de Letras, uma versão adaptada pelo alegre desembaraço lusitano: “Há bar e bar, há ir e voltar.” Uma “verdadeira consagração”, adjetivaria. A mesma sorte não teria o ferino “Vá de Metro, Satanás!”, slogan pensado para a invenção recente do Metropolitano: “Essa brincadeira ia-me custando o emprego.”

Fora da máquina de picar o ponto e das horas de ponta, “o” Alexandre O’Neill vivia para a sua máquina infernal de poesia: usando as mesmíssimas palavras escutáveis na farmácia ou na tascas da esquina, ele reinventava-as, rebuscando também coisas extintas nos dicionários, inventando vocábulos, um acrobata do ritmo a lançar-se no vazio, desdenhador da solenidade, sedutor da musa, tricotador de pontuações e pausas. Almada Negreiros (1893-1970), que o conheceu jovem, quis dar-lhe conselhos: “Então o meu amigo escreve?” Alexandre, já fiel ao que seria O’Neill, respondeu: “Faço uns versos, mas não os tomo muito a sério.” O artista da Orpheu respondeu-lhe que, pois, “devia…”. Anos depois, o poeta gravou num disco a seguinte declaração de intenções: “Que quis eu da poesia? Que quis ela de mim? Não sei bem. Mas há uma palavra francesa com a qual posso perfeitamente exprimir o rompante mais presente em tudo o que escrevo: dégonfler. Em português, traduzi-la-ia por desimportantizar, ou em certos momentos, por aliviar, aliviar os outros, e a mim primeiro, da importância que julgamos ter. Só aliviados podemos tirar o ombro da ombreira e partir fraternalmente, ombro a ombro, para melhores dias, que o mesmo é dizer, para dias mais verdadeiros. É pouco como projeto? Em todo o caso, é o meu.”

“Cama, copos e conversa”

Nos territórios da juventude, onde quase tudo começa, Alexandre O’Neill gosta já de se divertir, mas sobretudo descobre-se leitor voraz, admirador de Pessoa, Sá-Carneiro, Rilke, descobridor de poesia brasileira – ó Manuel Bandeira, ó Drummond de Andrade e Cecília Meireles e Mário de Andrade… Com os cúmplices Luiz Pedreira e Fernando Mendonça (livreiro na recém-aberta livraria Buchholz), e sob influência pessoana, o jovem O’Neill criará até um heterónimo, de vida curtíssima mas biografia longa: Hipólito Van Zeurer, caçador neozelandês, filho de holandês, passageiro frequente por Xangai e pelo Pacífico, poeta mais do que romântico. E, no meio de tudo, eis que descobre o surrealismo. No ano de 1947, Alexandre O’Neill tem na sua biblioteca o livro que aponta como o grande responsável pela descoberta do surrealismo francês em Portugal. “Fui eu que comprei A História do Surrealismo do Maurice Nadeau e disse que tínhamos de fazer uma coisa daquelas. Foi um alvoroço, o Surrealismo surgia-nos exaltante e libertador. O Cesariny fez a descoberta na altura, embora já escrevesse umas coisas com muito humor, que eram uma charge ao Neo-Realismo. O nosso Surrealismo era, aliás, uma reação ao Neo-Realismo da época”, declarará posteriormente. Num café da Avenida Almirante Reis, mais tarde na pastelaria Mexicana, aos dois amigos juntaram-se Fernando Lopes-Graça, João Moniz Pereira, Fernando de Azevedo, Marcelino Vespeira e António Pedro, entre outros, em jornadas de “literatura, arte e boutade”. Em 1948, O’Neill e o convertido Cesariny assinam o manifesto Porque Aderimos ao Surrealismo. O poeta chegou a publicar nesse contexto o volume híbrido de colagens de textos e imagens A Ampola Miraculosa, e escrevinhou, entre outras passagens insufladas pelo movimento artístico, o poema-homenagem Rua André Breton – “deflagraste em nós na sempiterna circunstância: a pasmaceira”. Mas a aventura surrealista tem tropeços e batalhas, exige correligionários, e Alexandre O’Neill, desiludido, abandona o grupo.

Nobre, mas pouco Mais próximo dos O’Neill de “classe média decaída”, como dizia, do que dos que faziam reluzir a aristocrática herança irlandesa denunciada pelo apelido

Certo é que o Movimento Surrealista de Lisboa deve o berço à amizade entre O’Neill e Cesariny. E é surpreendente descobrir que numa das últimas entrevistas dadas pelo poeta, Alexandre O’Neill disse que tinha poucos amigos, “para aí um ou dois”. “As amizades, como os amores, sempre lhe tinham vindo por rompantes”, declara a biógrafa. Eram como fases lunares, ciclos, contratempos, uma instabilidade meteorológica-literária em que havia zangas, às vezes reconciliações, outras vezes um perder de vista. Assim o recordou Noémia Delgado: “Teve muitos amigos por épocas. Era de paixões na amizade. Mas quando se dava com um amigo, não se largavam. Conversas até às tantas da manhã à porta de casa, saídas para um copo e outro…” José Cardoso Pires e Antonio Tabucchi, esses estariam sempre por perto. Aliás, seria ao escritor italiano que, no dia 25 de Abril de 1974, telefonou, para Genebra, anunciando “daqui a voz de Portugal livre.”

Certo é que o Movimento Surrealista de Lisboa deve o berço à amizade entre O’Neill e Cesariny. E é surpreendente descobrir que, numa das últimas entrevistas dadas pelo poeta, Alexandre O’Neill disse que tinha poucos amigos, “para aí um ou dois”

No outro campo dos afetos, havia quem o definisse como marialva, machista. O’Neill corria atrás de muitas “albertinas celestes doras guidas isabéis lauras marias mercedes”, e por aí fora. Tanto Noémia, que lhe conheceu os ciúmes, como os outros amores que povoaram a sua vida, sabiam-no desassossegado. “Nem marialva, nem libertino, ele gostava era muito de mulheres, gostava de as ter. Era um sedutor… Gesticulante. Absolutamente fascinante. Era um tipo que saltava, tinha um discurso permanentemente sublinhado pelo sorriso arteiro, entre o arteiro e o malicioso”, descreveu o escritor Baptista-Bastos (1934-2017). Num papel rabiscado, O’Neill ensaiaria esta frase a fugir ao alvo: “Ser mulher de um escritor/ é pior que ser escrava.” O casamento com Noémia Delgado, mãe do seu primeiro filho Alexandre (fotógrafo que captou o pai na intimidade), acabou por causa da loira Pamela, com quem o poeta dormiu na véspera de ir buscar a mulher à prisão. É que se havia a possibilidade de ele também ficar atrás das grades da polícia política, havia que seguir o mandamento horaciano e aproveitar o dia… A relação subsequente com a britânica estremecerá, depois, quando O’Neill lhe comunica, no regresso de uma viagem, estar de repente noivo de uma finlandesa, Anja, que, por sua vez, será traída pela própria irmã. Alexandre, dirá esta, era “o homem dos três Cês – Cama, copos e conversa!”. Mas, em 1969, O’Neill conheceu a mulher com quem arrisca casar pela segunda vez, ter um segundo filho, Afonso, e com quem começará a frequentar o meio da alta burguesia lisboeta: Teresa Patrício de Gouveia. Aconteceu o coup de foudre num jantar de homenagem ao pintor Escada, ele tinha 46 anos, ela 25. Gérard Castello-Lopes fotografá-los-á no dia do casamento, informais, belos, felizes – mas o poeta teve que puxar o lustro aos pergaminhos aristocráticos para aplacar as reticências da família da noiva.    

Dizem os amigos que Alexandre O’Neill não valorizava esta sua veia de descendente de aristocratas irlandeses e católicos, chegados a Portugal no século XVIII. Mas a lenda do anel com brasão dos O’Neill, que o pai de Alexandre lhe oferecera, já é outra história. Contou o crítico José-Augusto França (1922-2021) que o poeta “gabava-se do seu antepassado que tinha cortado a mão para ganhar a Irlanda”. “O brasão deles tem uma mão decepada. O rei de Inglaterra disse aos seus cavaleiros, quando iam abordar a ilha: ‘Eu dou a posse da ilha a quem lá puser primeiro a mão.’ E esse O’Neill cortou a mão e atirou a mão para terra e ficou senhor da ilha”, explicou o crítico e historiador. O anel de brasão andou democraticamente emprestado pelas mãos de vários amigos, incluindo o próprio França, mas também passou temporadas no “prego” nas alturas em que o dinheiro escasseou nos bolsos do nobre herdeiro.

Biografia revista e aumentada

Com a edição de 2007 há muito indisponível nas livrarias, a agora ressurgida Alexandre O’Neill, Uma Biografia Literária (Assírio & Alvim, 376 págs., €19,99) é resultado da dedicação de Maria Antónia Oliveira (também editora da obra de O’Neill para a Assírio & Alvim), que construiu este volume com as vozes “sampladas” dos que conheceram o poeta. No material inédito, agora acrescentado, destacam-se diversas cartas de diferentes acervos, iluminando “o fim da adolescência, os amigos antes do surrealismo, as primeiras leituras sérias e os poemas iniciais, esboços e tentativas” e depoimentos mais aprofundados – como o do filho Afonso – e maior perceção dos “lugares o’neillianos.”

Projeto novo

A Assírio & Alvim está a reeditar mais de dez títulos de Alexandre O’Neill por ordem cronológica, em livros isolados. Em 2025, sairão Abandono Vigiado (originalmente editado em 1960) e Poemas com Endereço (1962), mas 2024 já conta com os dois volumes inaugurais:

Tempo de Fantasmas
O livro de estreia do poeta, que assinalou a sua independência face ao Grupo Surrealista de Lisboa, é também aquele que “é já O’Neill na perfeição da sua voz”, escreve Fernando Cabral Martins no posfácio. Um “teatro pessoal” com a fauna da cidade, em que O’Neill usa “sensações para alucinar o real quotidiano, como se fosse um Pessoa surrealista ou um Cesariny neo-realista”. Inclui alguns dos seus poemas mais representativos: Um Adeus Português, O Poema Pouco Original do Medo, Uma Vida de Cão.
80 págs., €14,40

No Reino da Dinamarca
Neste volume de 1958, abrigando poemas do livro anterior, O’Neill faz-se “intérprete de uma vida mesquinha e não cantável, sempre ignorada pela poesia com maiúscula”, refere Joana Meirim no posfácio, citando Antonio Tabucchi. Uma “desmaiúsculiza-ção da palavra poesia” que, sublinha, foi um dos “maiores contributos de Alexandre O’Neill na cena literária em língua portuguesa”.
96 págs., €14,40

Outras lendas familiares havia para contar: como a do trisavô que andou pelo mundo a caçar borboletas e era amigo de Hans Christian Andersen. Ou a da avó Concha, aparentada de Eça de Queirós, vegetariana, espírita, mulher de paixões livres, escritora que assinava como Maria O’Neill e que, a partir de Amarante, foi uma figura de opiniões e intervenções fortes na arena pública ao arrepio da época castradora em que vivia. Dos seus triunfos, fazem parte o ter conseguido que o Estado português atribuísse ao poeta Gomes Leal uma pensão de cem escudos quando este se encontrava na miséria, e de ser a responsável pelo Primeiro Congresso Feminista e de Educação realizado em Lisboa em 1924 – o ano de nascimento do neto. Para Alexandre e para a irmã, Amelinha, a avó Concha escreveu muitas histórias infantis, pedagógicas, até subversivas.

O “espetáculo das pessoas”

“Xana”, ou Alexandre Manuel Vahia de Castro O’Neill de Bulhões, nascido a 19 de dezembro de 1924, faria sempre trocadilhos e chalaças, encostando-se a uma suposta ascendência ligada a Santo António, o franciscano cujo nome de origem era Fernando de Bulhões, “santinho” que lhe dava “uma certa audiência junto das devotas que conseguem uma especial atenção do referido (e simpático) milagreiro…”. No altaneiro 4º esquerdo da Rua da Alegria, para onde os pais mudaram loiças e livros, Alexandre, confinado à janela, via passar os “trabalhadores de aspeto cansado”: “Interessava-me o espetáculo das pessoas.” Contou que cresceu mais próximo dos O’Neill de “classe média decaída” do que dos que faziam reluzir a herança irlandesa. O pai, José António, não conseguiu exercer arquitetura por falta de dinheiro e tornou-se bancário; a mãe, Maria da Glória, era uma amarantina filha de médico – e será ela que, sussurrando uma cunha à PIDE, fará O’Neill ser libertado da prisão de Caxias anos mais tarde, para onde o poeta tinha sido despachado, depois de ser capturado no aeroporto com a multidão que aguardava Maria Lamas, vinda do Congresso Mundial da Paz em Viena.

Ideal surreal Em meados dos anos 50, então com vinte e poucos anos e envolvido no Grupo Surrealista de Lisboa

Em Amarante, a terra da família, as férias de verão ofereciam jogos de xadrez no Café Central com o padre Couto e o barão de Vilalva, raparigas e mergulhos no rio, e até um encontro com Teixeira de Pascoaes, que mereceu várias versões ao poeta, incluindo uma em que o escritor consagrado lhe ofereceu uns “cigarros magrinhos” que Xana contempla com “certa repugnância, já que do poeta apreciava não a saliva mas o verbo.” Aos 13 anos, era “ignorante como um chicote”, descreveu-o o escritor Alexandre Pinheiro Torres, amigo de infância nas ruas amarantinas, que, anos mais tarde, lê-se em Alexandre O’Neill – Uma Biografia Literária, tentará corrigir as suas memórias da juventude passadas a ferro rápido numa tarde de conversa doméstica, e divulgadas pela última companheira de O’Neill, Laurinda Bom. Nada de erudições, a caça aos pássaros é que dominava… Em Lisboa, Alexandre impressiona no colégio Valsassina: ganhou todos os prémios do concurso literário anual; o seu professor de Português, António Dias Miguel, aponta-lhe a argúcia e “uma alegria interior que o levava a ser um bocado satírico”; e o colega Frederico Valsassina Heitor recorda-o tendo “atitudes de poeta e de contestatário”, protegendo os mais fracos e indo a manifestações reprimidas. Júlio Verne, Emilio Salgari, Dumas, foram as primeiras leituras, mas, em casa de um amigo, devora também Graciliano Ramos, Lins do Rego, Jorge Amado, até Edgar Wallace.

Aos 17 anos, um mês depois de chumbar o 6º ano, Xana publica os primeiros versos no Flor do Tâmega, jornal de Amarante. Em entrevista a Assis Pacheco, contaria que a mãe, quando lhe apanhava um poema – “melhor seria dizer versinhos” – logo o rasgava. “Provavelmente com a intenção caritativa de fazer de mim o oitavo advogado da família dela”, atira. À época, os pais desabam-lhe em cóleras e fúrias; o filho, também dado a excessos, riposta, esbraveja contra a escola, pondera ser piloto até se descobrir míope ( “Eu andei pra marinheiro/ mas pus óculos e fiquei em terra”, escrevinha num poema, de 1966). Na parede da sala de família, um retrato de Salazar pontifica… No poema Pluma Caprichosa, Alexandre O’Neill desata memórias: “Estou onde não devia estar/ (…) Estou no murmúrio de desgosto da minha família (…), da minha família espiando amorosamente ferozmente os meus mínimos gestos/ pronta a saltar-me em cima a reduzir-me/ a mais um da família.”

Comemorações

O centenário de nascimento de Alexandre O’Neill assinala-se com várias iniciativas

Um O’Neill fotógrafo? Dedicatórias? Poemas ressuscitados em voz alta? Os 100 anos do poeta português assinalam-se hoje, quinta-feira, 19, com várias iniciativas. A Biblioteca Nacional de Portugal inaugura a exposição No Reino de O’Neill, comissariada por Joana Meirim e patente até 8 de março, num projeto curatorial que deseja iluminar “alguns dos momentos mais significativos do seu percurso intelectual” e “dimensões menos conhecidas”, “levando-o mais a sério”, a partir do espólio doado pela família à instituição. A exposição alonga-se em seis núcleos expositivos: Na Rua da Alegria, Na Rua André Breton, No Tempo de Fantasmas, Na Feira Cabisbaixa, Nos Anos 70, e No Vale Derradeiro, e inclui ainda o “interlúdio fotográfico” Olha Delas – que revela o “notável” fotógrafo Alexandre O’Neill; vitrinas dedicadas aos amigos, com dedicatórias, edições literárias, traduções; e projetos “em forma de assim”, onde se revelam, por exemplo, uma ópera rock em torno da cigarra e da formiga ou um projeto editorial que unia poemas de Alexandre O’Neill pai com fotografias do filho Alexandre Delgado O’Neill.

Também nesta quinta-feira, dia 19, a editora Assírio & Alvim convida para uma conversa com a biógrafa Maria Antónia Oliveira e com o autor e académico Fernando Cabral Martins, acompanhada de leituras a cargo de Rosa Azevedo, na Livraria Snob, em Lisboa, pelas 18h30. No Porto, haverá uma noite de poesia e cinema a partir das 21h15 no Batalha Centro de Cinema, com João Botelho e Rui Lage à conversa, e declamação de poemas por Francisca Camelo e Rui Reininho. Por sua vez, a rádio Antena 2 assinala os 100 anos de O’Neill com leituras de cinco poemas na voz de Raquel Marinho, autora do podcast A Poesia Ensina a Cair, nos seguintes horários: 8h30, 10h45, 15h45, 18h15 e 21h.

Um conflito maior espreita. Se aos 20 anos, O’Neill treina para intelectual em tertúlias, aos 25 tem a sua primeira paixão séria: Nora Mitrani, filha de espanhola judia, amiga de Breton, com data de regresso próximo a Paris. Alexandre quer juntar-se-lhe, mas não irá, mercê de quiproquós que há de evocar na famosa crónica, A História de um Poema. A família de Xana, então com 26 anos, não quer que ele “vá atrás da francesa” e os cordelinhos são mexidos de tal forma que o poeta se vê chamado à PIDE para um interrogatório de 15 horas com o desabrido subinspetor Seixas: “Se calhar V. quer ir porque essa gaja lhe meteu alguma coisa na cachola.” O’Neill respondeu que este se enganava, que N.M. “não era uma gaja” e que ele “não tinha cachola.” O desconcerto do PIDE não evitou que ele ficasse sem passaporte durante anos. Da mitificação dessa disputa familiar sairia o pungente poema Um Adeus Português: “Nos teus olhos altamente perigosos / vigora ainda o mais rigoroso amor / a luz de ombros puros e a sombra/ de uma angústia já purificada/ Não tu não podias ficar presa comigo/ à roda em que apodreço/ apodrecemos/ a esta pata ensanguentada que vacila/ quase medita/ e avança mugindo pelo túnel / de uma velha dor (…)”. Alexandre O’Neill não voltou a rever Nora, morta onze anos passados, mas ela leu ainda este poema e, na volta do correio, confessaria: “Fiquei atrozmente comovida.”

Pouco antes de cumprir o seu último aniversário, o dos 61 anos, Alexandre O’Neill declarara: “Fiz do corpo alavanca sem pensar no futuro.” A vida era para se experimentar, para gozar até ao último gole!

Em 1986, recorda a biógrafa Maria Antónia Oliveira, viviam-se tempos de mudança: o País entrava na ainda denominada CEE; Mário Soares, de que se comemora também este ano o centenário de nascimento, era Presidente da República; o filme de João Botelho que pedira emprestado a O’Neill o título, Um Adeus Português, ia representar Portugal na mostra de cinema europeu de Rimini. E Alexandre O’Neill estava no hospital desde abril. Tinha 61 anos e um passado de grande bebedor e fumador, adepto de jantaradas com amigos, e fora vítima de um acidente vascular cerebral. Pouco antes do seu aniversário, declarara: “Fiz do corpo alavanca sem pensar no futuro.” Algo que Baptista-Bastos descodificou assim: “Houve aí um escritor, muito famoso na época, e tal. Um dia estávamos a conversar, e eu disse: Não gosto nada do que escreve fulano de tal. E o O’Neill: Sabes o que é, ele escreve em papel-manteiga! O que é que esperavas de um gajo que nunca se embebedou? E de repente isto parece uma leviandade, uma coisa impetuosa, mas isto tem que ver com a vida, não com a vidinha. E a vida era para se experimentar, para gozar até ao último gole! O O’Neill embebedou-se, teve dor de corno, teve essas coisas todas. E depois era um individuo que sabia muitas coisas, e não era só uma cultura livresca.” Nesse agosto, o poeta sabia igualmente que estava muito doente. E, ao ser mudado da cama para uma cadeira nas rotinas hospitalares, extinguiu-se.

O funeral do ateu Alexandre O’Neill foi civil, comparecendo camaradas, admiradores, figuras de Estado, filhos. Em entrevista dada quatro anos antes dissera com desprendimento: “A morte é uma fuga definitiva a todas as chatices.” Mas o epitáfio que escrevera para si próprio, aos 30 anos, ficaria curto nas mangas para quem deixou tantos poemas, epifanias, despertares: “Aqui jaz Alexandre O’Neill/ um homem que dormiu/ muito pouco./ Bem merecia isto.”

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