Não há muitos festivais em que podemos começar um dia a ouvir música subaquática numa piscina de água do mar e acabar, sentados no chão, na escuridão noturna, com o barulho das ondas a ser ofuscado pela estridência dos cagarros. Esse festival é o Walk & Talk (W&T), na ilha de São Miguel, que chegou este ano à 11ª edição. Pode parecer pouco, mas houve um longo caminho percorrido. O Walk & Talk em 2022 não se parece muito com o da primeira edição, em 2011. Nesse ano, o festival era sobretudo dedicado à street art, tendo levado a vários lugares de Ponta Delgada 18 murais. Optando pela rua e as paredes da cidade, era difícil não dar nas vistas. O primeiro objetivo estava garantido à partida: agitar as águas. Sem saberem bem o que poderia vir a seguir, os organizadores do primeiro W&T tinham já algumas ideias claras: inventar um espaço de programação e criação que fosse alternativo aos dois polos da vida cultural da ilha, ou muito popular ou muito erudito e elitista, e envolver pessoas de diversas áreas nesse processo.
Apesar de neste ano não ter havido um único mural a ser pintado no âmbito do W&T, esse impulso inicial mantém-se no discurso e nas atitudes do trio que hoje dirige o festival: Jesse James (sim, é mesmo esse o nome, e às perguntas frequentes optou por responder, filho de emigrados no Canadá, que é um sinal da “diáspora açoriana”), Sofia Botelho e Luís Brum. Em pouco mais do que uma década houve muitas evoluções – andou-se muito, falou-se ainda mais. Hoje, o Walk & Talk passou, definitivamente, também para dentro de portas e ocupa espaços importantes da vida cultural de Ponta Delgada, como o Teatro Micaelense e o Centro Municipal de Cultura, e da ilha, como o Centro de Arte Contemporânea Arquipélago, na Ribeira Grande. “Ao princípio, o modo mais fácil de começarmos a fazer um festival assim era com a street art, nas ruas, com um impacto imediato”, diz Jesse.
A história do Walk & Talk provou que havia mesmo espaço, ali, para um festival assim, com atenção à arte contemporânea e ao cruzamento de artistas e linguagens. Hoje, o W&T conta com apoios importantes do Governo Regional dos Açores e da Direção Geral das Artes. Mas se se pode dizer que houve uma certa institucionalização do festival, é justo acrescentar que o movimento se fez em dois sentidos: a vida cultural de Ponta Delgada mudou nos últimos anos e o fervilhar anual do W&T teve a sua responsabilidade (há, até, quem fale duma “geração Walk & Talk”). Passear pela zona da Rua Pedro Homem, bem no centro da cidade, dá uma ideia dessas transformações. Recentemente aberta, a Magma é uma galeria de arte e um estúdio que propõe tatuagens únicas, arte “não temporária” nos corpos. Veteranos desta ocupação são Mário Roberto e Vitor Marques, na galeria e atelier Miolo. A dois passos dali, a Brüi, do artista francês Gregorie Le Lay, é loja, galeria e atelier. A pintora brasileira Ângela Fernandes fez daquele bairro a sua casa desde 2020 e ali tem o seu atelier, visitável. Mais afastado do centro, numa espécie de casa ocupada (mas não, é mesmo alugada) está o coletivo Atelineiras, um grupo muito jovem ainda a definir o seu espaço e objetivos, na arte e ações sociais, muito focado nas questões queer (o nome original era Atelineiros – mistura de atelier e “paneleiros” – mas decidiram mudar-lhe o género). Apesar de muitos dos seus membros estudarem agora fora dos Açores, têm a ambição e convicção de se manterem ali, na sua cidade, fazendo a diferença.
E por falar em novos espaços… A partir deste ano, uma novidade permite ao festival W&T pensar-se e projetar-se no futuro de um modo novo: a Vaga (desde 2021 sede da associação Anda e Fala, que é a responsável pelo festival Walk & Talk mas tem outras atividades) estará disponível todo o ano como epicentro de exposições, residências, conversas abertas e muitas ideias a fervilhar. Isso permite um “pensamento a longo prazo, como numa maratona”, diz Jesse, que admite que a pandemia teve pelo menos um aspeto positivo para a associação: “Permitiu parar para pensar.” Longe da precariedade e caráter efémero dos primeiros anos, o Walk & Talk está agora integrado numa estrutura mais sólida, parte de um ecossistema cultural que ajudou a impor na cidade, espaço a partir do qual se pode pensar toda uma estratégia de “democratização” das artes, de uma forma “tão diversa e inclusiva quanto possível.”
Na noite de abertura do Walk & Talk deste ano, com a presença do ministro da cultura Pedro Adão e Silva, a Secretária Regional da Educação e dos Assuntos Culturais, Sofia Ribeiro, terminou a sua breve intervenção dizendo que era altura de parar de falar e dar lugar à “festa” e à “alegria” do festival. O momento que, imediatamente, se seguiu nesse mesmo palco mostrou que o espírito do W&T não é bem esse (ou, certamente, não é só esse). Nenhuma “alegria” e “festa” se viu na performance/filme The Fever Hand, em que a brasileira Vivian Caccuri fala do regresso da febre amarela ao Brasil e dessa pesada herança de um passado colonial marcado pela exploração e abuso dos indígenas. A seguir, sim, sozinha em palco com um violino, muitos pedais e distorção a apache americana Laura Ortman fez a sua festa noise. E pela noite fora houve dança, com artistas no lugar de DJs, à frente do Teatro Micaelense, junto ao pavilhão temporário do Walk & Talk, assinado pelo Ilhéu Atelier e praticamente todo construído com madeira da muito açoriana criptoméria.
Neste ano, a diversidade de propostas artísticas foi claríssima, muitas delas fruto de residências feitas nestes dois últimos e atípicos anos. Os Açores podem ser o pano de fundo, e ponto de partida, para muitas das criações presentes, mas isso não é uma regra neste festival que não se quer propriamente insular, mas sim aberto ao mundo. A dupla Estela Oliva e Ana Quiroga faz-nos sentir baleias solitárias na imensidão de um oceano, tão real como utópico, na instalação Unidade, no Centro de Artes Contemporâneas Arquipélago. Tiago Patatas, investigador na área de arquitetura e ambiente, apresentou Telemetrics, uma abordagem original de um acontecimento pouco conhecido e estudado: a presença francesa nas Flores, nos anos 60, instalando na ilha um observatório militar integrado no projeto nuclear global de França. Junto à lagoa das Furnas, o americano Matthew C. Wilson exibe Island Attunements, uma hipnótica instalação de vídeo e som que remete para o potencial das ilhas como cenário privilegiado de investigação científica sobre as origens e a evolução da vida. Já Cristóvão Maçarico, vencedor do Jovens Criadores W&T 2022, tem os pés bem assentes na terra na exposição de fotografias Jumping into Existence, em que revela um novo e pessoal olhar para a sua ilha depois de passar uns anos fora. Diogo da Cruz, em Águas Futuras, projeto multidisciplinar (partilhado, em parte, com a francesa Fallon Mayanja), põe o foco numa das reais inquietações com o futuro da ilha, a possibilidade dos negócios de mineração subaquática, escolhendo a forma de um filme de ficção científica, uma escultura de ar futurista e algo ameaçador na água e as tais sessões de escuta debaixo de água de que falávamos no início deste texto (usando uma coluna subaquática utilizada na natação sincronizada e obrigando os visitantes a mergulhar nas piscinas do Pesqueiro). A americana baseada em Estocolmo Ellie Ga, artista que lida sempre com narrativas reais nas suas obras, tem estudado a misteriosa vida dos cagarros, ave sempre associada ao arquipélago dos Açores, que ali chega anualmente vinda do hemisfério sul, e transformou essa dedicação em sessões noturnas de audição in loco (à beira de uma ribanceira, à noite, algures na costa da ilha) e questionamentos em conjunto.
Na Vaga, atual epicentro do festival, a exposição com o mote do W&T 2022 (In the First Place) mostra bem a ambição global e multicultural deste evento juntando obras vindas da Gronelândia (os irónicos e sarcásticos postais do inuíte Uyarakq), do cruzamento de culturas entre Inglaterra e o Gana de Larry Achiampong (que imagina a bandeira pan-africana de uma espécie de utópicos Estados Unidos de África), da artista nigeriana/norueguesa Linda Lamingnan ou da colaboração de Caroline Monnet e Laura Ortman, com as suas identidades de ascendência indígena da América do Norte.
Além das exposições (e as já citadas não são uma lista exaustiva) inauguradas durante o festival, este ano com a marca da curadora sediada na Dinamarca Irene Campolmi , o W&T tem várias originalidades. A mais marcante: as suas “excursões” (com nomes tão sugestivos como “Excursão para Romper”, “Excursão às Portas da Perceção” ou “Excursão Aonde Não Vou”) propõem um circuito pela ilha inspirado por artistas e obras presentes no festival e as suas relações, mais ou menos óbvias, com pessoas, lugares e histórias do passado, presente ou futuro de São Miguel. O W&T Soundsystem (construído por Sérgio Coutinho e Francisco Antão) propõe uma ideia tão simples como eficaz: ir a lugares específicos e desfrutar de experiências sonoras/musicais saídas de duas grandes colunas amarelas. Mais original ainda, e só possível ali, é o “Cozido Comunal”, um piquenique em que todos os participantes no festival se juntam, na relva, à volta do tradicional cozido das Furnas.
O contexto de qualquer atividade cultural que aconteça agora, e nos próximos meses/anos, em Ponta Delgada é especial devido à candidatura em curso a Capital Europeia da Cultura em 2027 (já na fase final, cujos resultados serão conhecidos em dezembro, em que compete com Braga, Évora e Aveiro). O diretor artístico dessa candidatura, António Pedro Lopes, que olha para ela com a ambição de quem quer incluir todo o arquipélago nesse potencial acontecimento, acredita que se Ponta Delgada ganhar “isso não é um prémio para o que já existe, é uma espécie de bolsa de estudo para o que se quer trabalhar, para o futuro.” Jesse James há de recordar que foi no quadro de uma edição passada do W&T que essa ideia da Capital Europeia da Cultura começou a fazer o seu caminho. Certo é que há uma nova vaga ali, a crescer, e a mudar de formas, de ano para ano.