(Texto publicado na VISÃO Biografia do último trimestre de 2019)
Há dois anos, quando celebrou os 99 anos de idade, foi ao Museu do Fado a convite da diretora, Sara Pereira, falar do seu percurso perante um auditório onde não cabia nem mais uma agulha. Ali, estavam todas as gerações do circuito fadista, a história viva lado a lado, dos consagrados, como João Braga, ao prodígio de 16 anos chamado Gaspar Varela, guitarrista e bisneto de Celeste Rodrigues. Sim, os genes não mentem. Joel Pina apenas lamenta que a nova geração de executantes e apreciadores de fado não tenha podido ver e ouvir Amália Rodrigues em palco, sobretudo até 1980, altura em que ela teve graves problemas de saúde, detetados após uma atuação no Casino Estoril em 1979. Aí, sim, perceberiam a razão de ele ainda viver fascinado com um privilégio assim.
João Manuel Pina nasceu no Rosmaninhal, concelho beirão de Idanha-a-Nova, a 17 de fevereiro de 1920, escassos meses antes da fadista com quem correria mundo durante quase três décadas. Começou no bandolim e ouviu os primeiros fados na voz de Maria Alice, a primeira a gravar para a Valentim de Carvalho e mulher do patriarca da editora discográfica. Tocou com Martinho d’Assunção e o conjunto de guitarras de Raul Nery, tornando-se referência da viola baixo no fado, sempre fiel às cordas feitas de nylon revestido, da fábrica Dragão, do Porto.
Amália está no seu pedestal, mas Maria Teresa de Noronha, Tony de Matos, Fernando Maurício, Teresa Tarouca, Cristina Branco, Joana Amendoeira e muitos outros, de diferentes gerações, também ganharam asas tendo-o por perto. “É na cara do Joel que eu vejo como está indo a minha atuação”, dizia Amália. Acompanhar “é dar chão a quem está a cantar”, encolhia-se ele.
A sua grandeza não se mede apenas em palco.
Joel Pina ficou de fora daquele que é, para os entendidos, o álbum superlativo de Amália Rodrigues, Com que Voz. “Fizeram muito bem”, concordou. “Gente a mais pode atrapalhar. E as coisas do Alain ficam muito melhor com dois músicos só.”
Eis, pois, Joel Pina. Mestre e senhor do fado.
Como é que despertou para a música?
Foi sem querer e sem pensar. Aos 8 anos, o meu pai comprou um bandolim durante uma viagem a Lisboa, chegou a casa e disse: “Toma, arranja-te!” Fui arranhando aquilo e, ao fim de algum tempo, já começava a purpurar os sons e não largava o instrumento. Conhecia músicas de ouvido e, meses depois, já tocava umas coisinhas. “Agora, aprende lá esta”, pediam-me. Um ano mais tarde, já sabia tocar bandolim e o meu pai mandou-me aprender solfejo. Havia lá, na minha terra, um indivíduo que sabia muito de música. E ensinou-me. No barbeiro, juntava-se muita gente, tocavam-se umas coisas e, um dia, esse meu mestre começou a dizer: “Ele já dá cartas aos mais velhos.” Ele dizia que eu tinha grande intuição musical e um ouvido que ia para além da música. Ainda jovem, vim para Lisboa. Fui tocar com o conjunto de guitarras do professor Martinho d’Assunção, onde aprendi muita música. Guitarra e viola, sobretudo…
Porquê a escolha da viola baixo?
Tocava guitarra e tocava viola, mas faltava-me aprender viola baixo. Decidi tocar viola baixo porque senti que isso me distinguia; na altura, não havia nenhum no fado – o quarteto do Martinho era de exibição, não era de acompanhamento –, mas não havia onde tocar. Tocávamos uma ópera de Wagner, as danças húngaras, a marcha de guitarras de Schubert, números clássicos. O Martinho era boa pessoa, bom professor. Tinha muitos conhecimentos. Depois, criou-se o conjunto de guitarras Raul Nery, em 1959. Esse era mesmo fadista! Era ele, o Fontes Rocha, o Júlio Gomes e eu. Existiu durante dez anos, tínhamos um programa na Emissora Nacional, mas, depois, andávamos muito tempo fora, com a Amália, às vezes faltávamos e, a dada altura, as nossas vidas tiveram rumos diferentes.
Quando é que conheceu a Amália?
Quando já tinha formação musical de guitarra, viola e solfejo, o dono da Adega Machado convidou-me para tocar nessa casa de fados. Aceitei e fiquei. A Amália Rodrigues era comadre dos Machados, a Maria de Lurdes Machado e o Armando Machado, e, de vez em quando, aparecia por lá. Foi aí que a conheci, talvez em 1950. Simpatizou comigo e eu com ela. Bem, quem é que, nessa altura, não simpatizava com a Amália? [Risos.]
A partir daí, o seu mundo mudou…
Em 1954, apareceram aí uns franceses que queriam fazer um filme, Os Amantes do Tejo. E a Amália fazia-se acompanhar de dois guitarristas, guitarra portuguesa e viola, mas os franceses quiseram quatro. Em vez de convidarem outro “viola”, ao passarem na Adega Machado, ouviram-me tocar e disseram: “Queremos levar aquele também.” E como precisavam de outro guitarrista, foram à Parreirinha de Alfama, onde estava o Jaime Santos. Ouviram-no tocar e ficaram encantados. Fomos um mês para Paris para fazer o filme, as cenas de interiores foram todas lá. Foi este o primeiro contacto profissional que tive com a Amália Rodrigues. Foi um filme que deu nas vistas. A ela, deu-lhe publicidade pelo mundo fora.
Quando é que começou a viajar para todo o lado com a Amália?
Comecei a tocar regularmente com ela a partir de 1966. A Amália Rodrigues só tinha dois guitarristas, mas foi convidada pelo maestro Andre Kostelanetz, que era um admirador dela, para fazer um concerto no Lincoln Center, em Nova Iorque, nos Estados Unidos da América. O Fontes Rocha, que era guitarrista da Amália há pouco tempo, estava a tocar viola. E foi ele quem sugeriu à Amália Rodrigues que fosse o quarteto do Raul Nery a acompanhá-la. Ela entusiasmou-se e convidou-nos.
Quem eram os compositores que ela mais admirava?
Para ela, o primeiro mestre foi o Frederico Valério, que lhe fez fados de grande categoria. Mais tarde, foi o Alain Oulman. Ele modificou um bocadinho o tipo de músicas, mas eram interessantes também. As pessoas não gostaram muito no início. Os fados do Alain não eram fáceis…
Como era a relação dela com os músicos? Complicada?
Nós gostávamos muito de a ouvir. E isso provocava em nós interesse e entusiasmo. Quando alguém canta mal, a gente quer tocar mas não tem inspiração nenhuma. Ela era ótima para nós! E, fora do palco, nunca havia uma repreensão, era uma grande companheira, sempre preocupada connosco. O hotel onde ela ficava era onde nós ficávamos. Por vezes, íamos fazer-lhe companhia à noite. Sendo alegre, talvez houvesse nela uma certa tristeza. Era a sua natureza. Daí gostar de estar sempre acompanhada. Ela adormecia tarde. Ficávamos até às duas, três horas da madrugada, a conversar, mas, quando já estávamos a ficar com sono, aproveitávamos o momento em que ela passava pelas brasas e levantávamo-nos devagarinho…
Que viagens ou concertos tiveram mais significado para si?
O Japão e Inglaterra foram coisas raras, mas as digressões por Itália também, até aprendíamos as músicas e os dialetos em viagem…
Como foi possível ir à Roménia (1968) e à União Soviética (1969) em plena ditadura?
Através de uma agência em Paris. Contratou a Amália com um mês de antecedência, mas estivemos um ano à espera que se concretizasse. Na União Soviética, era tudo muito esquisito. Nos hotéis, o papel higiénico era feito com faturas de escritório. Só o metropolitano era uma coisa luxuosa. Vimos um atraso muito grande. E até dissemos: “Porque é que o Salazar não abre as portas e deixa os portugueses verem o atraso que isto é? Porque é que ele quer esconder esta realidade? Ele devia era ter interesse em mostrar.” Houve dois espetáculos em que não jantámos e, depois, já não havia o que comer em parte alguma. O nosso cicerone é que arranjou umas sanduíches. Era uma pobreza. Às vezes, eram três horas para nos servirem o almoço. E a comida acabava antes de acabar a fila…
E na Roménia?
Na Roménia, [o regime] era um bocadinho mais aberto. Também era uma pobreza franciscana, mas as pessoas eram cultas. A pessoa que acompanhava a Amália sabia sete línguas, o marido era médico, mas trabalhavam a 50 quilómetros de Bucareste. Todas as manhãs, iam numa camioneta, cada um para seu lado, e, à noite, encontravam-se em casa…
Houve uma loucura com a Amália na Roménia, não foi?
As pessoas foram esperá-la ao aeroporto! E, depois de a conhecerem, passou a ser uma deusa. Na União Soviética, esteve tudo cheio também. Fomos à Ucrânia, à Arménia, a todo lado. Em Moscovo, foram tantas as palmas que o nosso cicerone, que falava francês, foi chamar-nos ao camarim para ela cantar mais um fado ou dois, quando havia ordens para ser só aquilo que estava programado…
Nunca se fartavam de tocar com ela?
Não, nunca! Não era nada maçador. E quando se é novo, aguenta-se tudo. Ela, às vezes, não tinha dormido quase nada e fazia o espetáculo. Tinha uma resistência… Uma vez, na Roménia, estava constipada e rouca, mas cantou com uma força tal que até os romenos se levantaram. E era muito generosa. Em Paris, uma vez, íamos no carro e ela viu um pobrezinho na rua. Pegou numa nota de 500 francos e disse: “Dê-a àquele senhor.” Quando olhou para a nota, o homem deve ter ficado doido. Ao ver isto, um colega meu virou-se para ela e disse-lhe: “Ó Amália, então vai dar 500 francos a um tipo que, se calhar, é mais rico do que eu?” [Risos.]
Porque disseram que ela era a “cantora do regime”, a “cantora da ditadura”?
Ela nunca fez favores ao regime, é uma injustiça dizerem isso. Completamente! Há pessoas que, por causa da política, são capazes de gostar ou de odiar alguém e fazem-no sem olhar ao talento. Ela podia ter as suas simpatias e gostava muito de sossego, de tudo o que fosse rebuliços não gostava, mas, quando estávamos a preparar-nos para ir ao Brasil, ela foi ao Secretariado Nacional de Informação, o SNI, pedir dinheiro para poder levar mais dois guitarristas, embelezar o espetáculo e honrar o País. E lá, disseram-lhe: “Só podemos pagar um.” Sabe o que ela respondeu? “Se só têm dinheiro para um, então, também não preciso.” Recusou e pagou tudo do próprio bolso. Isto passou-se no outro regime e negaram-lhe auxílio à mesma.
O meio fadista gostava dela ou invejava-a?
Quem tinha pretensões a ser grande artista, não gostava da Amália Rodrigues. Onde ela chegasse, apagava tudo.
Havia, no País, a real noção da importância dela no estrangeiro?
A Amália Rodrigues foi das pessoas mais importantes do mundo na música. E muita gente ainda não sabe. Ela fez parte das quatro ou cinco grandes vozes do planeta. Nem eu sabia verdadeiramente, agora é que tenho refletido melhor sobre aquilo que ela foi e representou em todos os países por onde passou…
Dê lá um exemplo…
Na Argentina, houve um médico que aprendeu a falar português por causa dela. Da última vez que lá estivemos, estava a trabalhar a mil quilómetros de Buenos Aires e veio de propósito para nos ouvir, pois tinha feito uma promessa a si próprio: “Eu vou aprender a falar português para entender tudo o que esta mulher canta.” Uma vez, um velho amigo dela foi visitá-la ao hotel e entregou-lhe um livro de um escritor sobre as oito mulheres que amou no mundo. Uma delas era a Amália.
Nos amores, falou-se muito de Ricardo Espírito Santo…
O Ricardo Espírito Santo tinha uma grande paixão por ela. Ele, quando encontrava o Santos Moreira, “viola” da Amália, dizia-lhe logo: “Quando quiser, apareça lá pelo banco.” Ele chegava, anunciava-se e era logo recebido. O Ricardo Espírito Santo fazia isso porque gostava sempre de contactar as pessoas que eram íntimas da Amália, de estar por perto. Até comprou um prédio no Miradouro da Senhora do Monte à irmã mais nova da Amália, a Detinha. Ela vinha cá muitas vezes, mas o marido, o César Seabra, uma vez, disse-lhe: “Mas isto aqui é algum hotel? Estão aqui constantemente!” E ela zangou-se…
Como era a Amália no quotidiano?
O João Belchior Viegas, da Valentim de Carvalho, é que tratava das escritas todas. Fazia os contratos, lidava com os estrangeiros, tratava dos bilhetes, arranjava o dinheiro. Foi um grande auxiliar. A Amália era muito desorganizada, mas tudo lhe corria bem. Os génios têm sempre uma pancada. [Risos.] Ela chegava a combinar cinco almoços e faltava a todos, esquecia-se, mas, em todas as conversas onde estivesse, ouvia e guardava tudo. A cultura é aquilo que fica.
O que recorda de mais simbólico da sua vida com Amália Rodrigues?
Toquei 29 anos com ela. Logo a seguir, foi o Carlos Gonçalves, 26 anos. Foi a melhor vida que podia imaginar-se. Não houve nada mais bonito, mais perfeito, mais maravilhoso do que isto. Tudo do melhor, tudo no meio da música. E ela não se coibia de nada. Ao contrário do que dizem, ela não gostava de vinho, mas gostava de beber para brindar e gostava de alegria à volta dela. E todas as benesses, todas as atenções que tinham com ela se refletiam em nós. Os embaixadores diziam que ela é que era a embaixadora do País.