“Olá, muito prazer em conhecê-la.” “Obrigada”, responde Madonna num português decentíssimo, com r’s dançantes e vogais abertas. O “efeito Madonna” também é isto: estar a um metro da maior artista contemporânea da pop, com milhões de discos vendidos, mito construído a pulso e uns quantos recordes no currículo, e, ao ouvi-la exprimir-se na nossa língua, tropeçar num despropositado deslumbramento adolescente. No discreto hotel londrino onde se acotovela uma vintena de jornalistas experientes, convocados em vários países para entrevistar a cantora a propósito do seu 14º álbum de estúdio, Madame X, há gente a roer as unhas, inquieta e a consultar anotações como se estivesse quase a entrar para um exame de Medicina. Levantam-se e sentam-se; parece, também, o nervosismo antes de uma atuação ao vivo. E, de certa forma, é. Entrevistar Madonna é um triunfo do protocolo, uma visita a uma corte controlada e coreografada ao milímetro. Há que ultrapassar uma seleção prévia (o único meio português a quem a artista concedeu entrevista foi a VISÃO), assinar acordos de sigilo, aceitar condições e embargo quanto à data de publicação, ouvir o disco num estúdio fechado (até o técnico de som desconhece o que se está a ouvir), saber o local da entrevista apenas duas horas antes, ouvir a fiel publicist pedir delicadeza com a chefe… Ser a única jornalista portuguesa mereceu, desta vez, atenção inesperada: os colegas estrangeiros tentam tirar dúvidas (“Os batuques ouvidos no álbum pertencem à tradição musical portuguesa?”; “Costumam ver a Madonna nas saídas à noite?”). E a publicist, zelosa, mestre em artes marciais, sublinha que informações que inflamaram os jornais não correspondem à verdade: não, Madonna não se vai embora de Portugal; não, não houve problemas com pedidos para cavalos entrarem em palácios…
Encaminhados para uma sala alcatifada e suavemente iluminada na cave do hotel, a VISÃO e mais quatro jornalistas (um repórter de rádio francês, um seu conterrâneo de um meio LGBT e duas jornalistas de revistas dedicadas a música, uma japonesa, outra espanhola) preparam-se para fazer render os magros 20 minutos disponíveis para a ronda de perguntas (em que cada um disparará para direções diferentes). Em silêncio, do tipo que se ouve nas igrejas: “It’s like a little prayer…” Quase uma hora passada, Madonna chega: mais petite do que o animal atlético de palco deixa adivinhar, muitíssimo mais bonita do que nos retratos recentes que parecem mostrar a material girl a contrariar as seis décadas de vida com todas as armas. Uma lady com estilo muito britânico: camisa branca de laçada subida no pescoço, pulseiras de ouro, gabardina clássica Burberry, cabelo louro em ondas. E a pala negra no olho. Madame X? Madonna, educada, contida, a disparar, por vezes, uma graça para aliviar a tensão. Mas a pirata espreita: olha diretamente para os jornalistas, sabendo que os tem na mão, controlando o que (não) diz. Uma performance sem falhas.
Tínhamos a expectativa de que o novo disco, Madame X, fosse um tributo a Lisboa e a Portugal. Esta foi a sua maneira de homenagear o fado?
Diz-me tu… Não é apenas uma homenagem ao fado, é também às mornas, e há ainda outras influências musicais por eu estar a viver em Portugal. Portanto, obviamente é o lugar onde o meu disco nasceu, e há imensas influências portuguesas. Espero que o meu português seja bom…
Muito bom.
Sim? Canto em português. Tive um bom professor.
Quem foi?
Dino d’Santiago. Ele apresentou-me a imensos músicos maravilhosos, incluindo as Batukadeiras. O Dino foi fundamental, ajudou-me muito a criar este álbum. Madame X é um reflexo do meu tempo em Lisboa. E eu continuo a viver em Portugal. Ainda há três dias estive lá…
Então, os rumores de que vai deixar Lisboa não são verdadeiros?
Não, não. O meu filho [David Banda] ainda joga futebol no Benfica, tenho lá uma casa, e ando para trás e para a frente. Vivo na TAP Air Portugal, é o meu lar!
Esperávamos ouvir Dino d’Santiago em Madame X. Ele participou no álbum?
Sim. Primeiro que tudo, ele ajudou-me com o meu canto. Segundo, ele foi uma ligação entre mim e os músicos com quem trabalhei. Ele é de Cabo Verde, assim como as Batukadeiras, e a maior parte destas mulheres não falava inglês, portanto ele estava comigo quando estávamos a gravar a canção e explicava-lhes o que eu queria. E ajudou-me, ainda, musicalmente. O Dino colaborou em todos os sentidos para fazer aquele tema [Batuka] ganhar vida, porque eu não tinha forma de comunicar com elas. Bem, eu tenho uma forma: através da música. Tenho uma outra canção, chamada Funaná, inspirada por ele, e que mais tarde vai ser uma faixa bónus. Também na versão deluxe de Madame X, há um tema chamado Ciao Bella, em que canta o Kimi Djabaté, da Guiné-Bissau, e foi o Dino que mo deu a conhecer. Quando interpretei Killers Who Are Partying e Extreme Occident, que são ambas definitivamente influenciadas pela morna, eu queria a colaboração do Dino e saber a opinião dele. Queria que tudo tivesse um feeling autêntico. Portanto, a aprovação dele significava muito para mim.
Usa, aqui, ritmos africanos, percussões, a Orquestra Batukadeiras… Como é que as descobriu? E como é que entrelaçou a sua música com estes sons fantásticos?
Elas tocam numa almofada de couro que colocam entre as pernas, a txabeta, com um beat triplo, cantando e dançando. As Batukadeiras são uma sociedade matriarcal formada, há muitos anos, em Cabo Verde, e eu tive o privilégio e a honra de as conhecer através do Dino d’Santiago. Ele levou-me a um clube e disse: “Vou apresentar-te estas mulheres incríveis e deixar-te de boca aberta.” Vi-as tocar e foi exatamente o que aconteceu. Depois de as ver, queria fazer uma música com elas. Elas chamam-se Orquestra Batukadeiras, mas há muitos outros grupos diferentes em Cabo Verde e também a viver em Portugal. Há um beat triplo, e eu acrescentei-lhe outro tambor, que tem um tempo 4/4, e o timbale… Esse foi o desafio: conseguir fazer tudo funcionar em conjunto. E isso demorou muito, muito tempo.
Madame X é um álbum muito político, com imensa revolta. Qual é a sua atual relação com o mundo: sente-se assustada, está farta, sente-se zangada?
Sinto todas essas emoções. Estou assustada, sinto-me perturbada com imensas coisas que estão a acontecer no mundo. Mas estou esperançosa de que o futuro guarda muitas possibilidades. E espero ter sido capaz de canalizar a minha revolta e a minha raiva para criar algo mais alegre, e para inspirar as pessoas a agir. Penso que é isso que temos de fazer com a nossa revolta, porque só com ela não vamos mudar o mundo.
A certa altura canta: “Your world is full with pain [O vosso mundo está cheio de dor].” Está a dizer que este mundo já não é seu?
Eu não digo que isto já não é meu. Falo do mundo onde as pessoas são governadas e dominadas pela ilusão da fama e da fortuna, governadas e escravizadas pelas redes sociais, governadas e dominadas por opressores, pela discriminação – esse é o mundo de que eu não faço parte. E essa canção [Dark Ballet] é também inspirada por Joana d’Arc e pela sua história. É um cruzamento em que fundimos Joana d’Arc e Madame X. Estou a enunciar as suas palavras quando ela diz: “Não tenho medo de morrer por aquilo em que acredito.” Eu sinto o mesmo.
O álbum é inovador e surpreendente, mistura as influências da música eletrónica com várias sonoridades, usa vários coros e produtores diferentes. Qual foi a sua abordagem musical?
A minha abordagem musical? Comecei com a guitarra portuguesa e também com a guitarra da morna, que ouvi numa living room session em Lisboa. O disco foi construído à volta desse som em Killers: foi a primeira canção escrita para o álbum, e tudo cresceu a partir daí. A autenticidade da música que eu andava a ouvir à minha volta, sempre que saía, quando ia a living room sessions, ao Tejo Bar… Atira-se uma pedra à água e as ondulações formam-se: o som daquela guitarra foi a primeira pedra.
Concorda com a palavra “disruptivo” para descrever Madame X?
Provocador, confrontativo, emocional, apaixonado, essas são palavras que eu usaria. E, esperemos, inspirador.
Como foi o reencontro e a nova colaboração com Mirwais [produtor e compositor de música eletrónica progressiva francês]?
Foi muito bom. E Killers foi a canção com que começámos a trabalhar. Aquela guitarra portuguesa foi um sample que captei numa dessas sessões e que lhe enviei. E disse-lhe: “Este som da Cesária Évora, esta música da morna e de Cabo Verde… Sinto-me inspirada por esta melancolia e sentimento, mas quero pegar neles e dar-lhes mais modernidade. O que pensas que podemos fazer com isto? Inspira-te?” Ele ficou inspirado por este som, obviamente, e por muitas outras coisas. Mas tudo o que eu e o Mirwais criamos juntos, acaba por tornar-se político, porque essa também é a forma de ele pensar.
É muito diferente do trabalho que produziram juntos há dez anos?
Para mim, é uma continuação do American Life [de 2003] em muitos aspetos.
No início do tema I Rise, ouve-se uma voz feminina a questionar: “How does a government works? [Como é que um governo funciona?]”. É a de Greta Thunberg, a adolescente sueca que luta pela causa ambiental?
Não, é a de Emma Gonzalez, a ativista do tiroteio em Parkland, na Marjory Stoneman Douglas High School, Florida [em fevereiro de 2018]. É a sua voz, pertence ao discurso que ela fez.
Atualmente, olhamos à volta e vemos raparigas e mulheres a assumirem posições fortes como líderes, observamos o movimento #MeToo… Enquanto artista pioneira, sente que teve uma grande influência nestas jovens?
Espero que sim. Essa é a minha intenção. Eu reconheço que uma jovem mulher como a Emma também é uma porta-voz e uma pioneira para a geração dela. Eu estou só a continuar o que sempre fiz: a defender os direitos das mulheres e dos seres humanos em geral. Sempre a lutar pela igualdade.
Olhando para o início da sua carreira, com Holiday (1983), acha que este foi um fast hit porque foi a primeira a defender essas causas?
Suportei muitos golpes, claro. Definitivamente, sempre senti que estava na linha da frente. E quebrei muitas barreiras para as mulheres que vieram depois de mim. Mas penso que a luta não acabou e ainda estou a combater pelas mesmas coisas.
Há 30 anos, estávamos a celebrar o lançamento de um dos melhores discos da história da pop, Like a Prayer (1989), que incluía Express Yourself, uma canção – ou um poema – sobre temas que também andamos hoje a celebrar e a debater. Tem todas estas questões em mente quando lança um novo disco?
Sinceramente, quando escrevi Like a Prayer, não estava a pensar que ia ser tão controversa. No vídeo eu beijava um santo negro, dançava em frente de cruzes a arder e muitas pessoas entenderam-no como um sacrilégio, foi polémico. Essa nunca foi a minha intenção. Mas, agora, pretendo ser controversa.
Quando agora ouvimos Like a Prayer e Express Yourself, soa muito contemporâneo…
Soa? Isso é a natureza humana. Mas esses temas estão todos ligados.
Ouvir a guitarra portuguesa no álbum é entusiasmante e inesperado. E, em Killers, é usada como intro para um tema cheio de manifestos. Dá a ideia de que enfrenta todos os grandes temas atuais (“I’ll be Africa, if Africa is shut down, I’ll be the poor if the poor are humiliated, I’ll be a child if the children are exploited, I’ll be Islam if Islam is hated, I’ll be Israel if they’re incarcerated”…) de forma muito pessoal. Pode falar sobre isso?
O que Mirwais e eu estamos a tentar dizer em conjunto é que não olhamos para o mundo de maneira fragmentada: vemos o mundo como um todo. E eu sinto que sou um elemento da alma do universo. Não vejo o mundo como categorias e rótulos, mas o mundo gosta de categorizar, rotular e compartimentar as pessoas, porque isso as faz sentirem-se seguras. Portanto, eu digo: “Bem, eu serei todas essas coisas, colocar-me-ei nessa categoria, ficarei na linha da frente e enfrentarei os golpes, enfrentarei o fogo.” Porque sou uma cidadã do mundo, e a minha alma está conectada a todos os seres humanos. Portanto, é minha responsabilidade tomar conta de todos os seres humanos. Se uma pessoa sofre, eu sofro: eu sofro contigo. É um ato de solidariedade, uma declaração de solidariedade.
Não há muita gente que tenha feito tanto pela comunidade LGBT como Madonna: sente que é um ícone, que faz jus ao crédito que lhe atribuem?
É estranho alguém dizer que és um ícone [pausa]… Sinto que fui abençoada com a capacidade de ter uma voz e de falar, e de ajudar os outros, e de defender aqueles que não têm voz. Acho que “ícone” é só o nome que os outros me dão. Portanto, se acreditas que sou um ícone, então eu sou um ícone.
Usou sempre a provocação para fazer as pessoas concentrarem-se nas ideias progressistas que defende: os direitos humanos, os direitos das mulheres, LGBT, antirracismo… Hoje, é algo assustador porque a provocação é uma estratégia usada pelos populistas para agitar e para defender a sua agenda. Como vê esta apropriação?
Dá-me um exemplo. Quem é que usa a provocação?
Trump, Le Pen… Mas nos anos 1980, 1990, 2000, a provocação era um meio de tornar a sociedade mais progressista. Neste momento, tem-se a sensação de que a provocação está associada a um retrocesso, a tornarmo-nos mais conservadores e tacanhos.
Se for esse o plano… Se for uma pessoa tacanha a ser provocadora, então essa será a sua mensagem, o seu objetivo. Tudo depende da intenção do provocateur. Eu não sou tacanha, não estou a ser provocadora para rebaixar as pessoas, para as colocar no seu devido lugar, para as separar, para construir muros, para fazê-las sentirem-se pequenas ou mal acerca de quem são. Essa não é a minha intenção, é evidente – é, aliás, o oposto disso. Mais uma vez, pode-se ser provocador como um miúdo de sete anos, fazendo birras, atirando com loiça pelo ar: é ser-se provocador pela vontade de destruir, e essa não é a minha intenção.
Há muitos idiomas aqui. Sente que há uma mudança no statu quo da música pop: a língua inglesa não é o único caminho, perdeu o monopólio?
Isso é completamente verdade, e é ótimo. Adoro a ideia de world music e, como já disse, detesto compartimentar tudo, e isso inclui a música. Se não queremos compartimentar as pessoas, porque o deveríamos fazer com a música? Adoro ouvir rádio em Nova Iorque, onde todos estão a cantar em espanhol, adoro conduzir por Lisboa e ouvir música de todo o lado: samba, reggaeton, dance hall… É incrível.
Deve ser um grande desafio quando tem de compor temas em outras línguas…
Mas eu gosto de desafios! [Risos.]
Trabalhou com muitos criadores e designers franceses, desde Jean Paul Gautier a Mondino, Martin Solveig, Mirwais. Porque gosta tanto de colaborar com artistas franceses?
Não conseguem manter-se fora do meu caminho [risos]… Gosto de colaborar com eles porque são teimosos. Fazem-me frente. E todas essas pessoas que mencionaste são altamente intelectuais, criativas, cultas. Acho que temos uma espécie de sinergia.
Como é o processo de escolher as pessoas com quem colabora? Escolhe-as porque quer aprender algo novo ou para tratar de questões musicais que nunca experimentou antes? Por exemplo, o Maluma…
Todas as colaborações que fiz foi por conhecer as pessoas. Elas surgem de forma muito orgânica e natural. Conheço-os, falamos em trabalhar juntos, partilhamos um copo de champanhe, damo-nos bem, falamos sobre o que gostaríamos de criar juntos e acontece. Não é nada de muito profundo ou de significativo, para dizer a verdade. Sou uma fã de todas as pessoas com quem colaborei.