Passaram-se dez anos desde que a família Lopes mudou de casa para um bairro novo de Lisboa. Despediram-se dos vizinhos de sempre a 25 de Abril de 1974, dia em que Portugal acordava com a Revolução nas ruas, chegando assim ao fim uma ditadura de 48 anos. Foram tempos de mudança no País, mas também para António e Margarida, que, na altura, tinham o filho do meio na Guerra Colonial. Carlitos, o benjamim, cresceu e tem agora 22 anos. A sua voz continuará a narrar os novos episódios de Conta-me Como Foi, série que regressa à RTP1 na primeira semana de dezembro. Depois de cinco temporadas, emitidas entre 2007 e 2011, em que assistimos ao período da ditadura visto pelos olhos de uma criança, agora serão os anos 80 pelo olhar de um jovem adulto.
Em 1984, António (Miguel Guilherme) e Margarida (Rita Blanco) já são avós, e Dona Hermínia (Catarina Avelar) tem dois bisnetos (um de Isabel e outro de Toni). Regressado de Moçambique, Tóni (Fernando Pires) trabalha no jornal Tribuna de Lisboa, em que é jornalista e se envolve em polémicas, como a investigação às FP 25, organização terrorista de extrema-esquerda. Isabel (Rita Brütt), a filha mais velha, é atriz e está novamente noiva, depois de ter ficado viúva e com um filho do ex-padre Vítor. Carlos (Luís Ganito) mora sozinho numas águas-furtadas no Bairro Alto e trabalha em campanhas de publicidade, que concilia com a escrita no mesmo jornal onde trabalha o irmão. Sempre preocupados com o futuro e a estabilidade dos filhos num Portugal democrático, Margarida mantém a sua boutique, mas o casal vai abrir outro negócio: um parque de campismo em Setúbal. Há um novo membro na família. Aos 13 anos, Susana (Beatriz Frazão) foi adotada pelos Lopes e traz à narrativa uma forma de pensar mais moderna, pois só tem memórias de viver em liberdade.
“Esta será uma temporada muito virada para a família. Antes havia o antigo regime como antagonista”, explica Francisco Barbosa, diretor de produção. “Há um lado muito humano na nossa história. Os Lopes são quase como os primos que vêm do Brasil visitar-nos”, acrescenta Miguel Simal, guionista.
Anos 80 sem réplicas
Com o FMI – Fundo Monetário Internacional pela segunda vez em Portugal (a primeira intervenção foi em 1977), o País é governado por uma aliança entre PS e PSD, e o primeiro-ministro Mário Soares debate-se com a grave situação económica. É neste ambiente de uma jovem democracia ainda periclitante que se passam os 52 episódios de Conta-me Como Foi, cada um num mês do ano (até 1987), aproveitando a cronologia dos momentos que marcaram a nossa História.
E se o mais difícil nesta produção de época é recriar a Lisboa sem pilaretes, sem tantos carros nem rotundas, os “preços proibitivos” dos direitos internacionais de determinadas imagens obrigam a produção a puxar ainda mais pela imaginação e pelo arquivo de áudio da RTP. Não veremos imagens de Carlos Lopes a vencer a maratona em Los Angeles, em 1984; apenas ouviremos o som da vitória. Também não veremos imagens do filme Flashdance, com Jennifer Beals, numa ida de Carlitos ao cinema.
Em Vialonga, nos estúdios da SP Televisão, multiplicam-se os objetos, a roupa e os cenários que retratam uma época tão efervescente. Na sala de adereços, há mochilas antigas com armações de alumínio para usar no campismo, cigarros falsos, daqueles que deitam fumo, O Sabichão, clássico jogo de tabuleiro da Majora, a boneca Tucha (um must, muito antes de a Barbie chegar a Portugal) e várias edições falsas do Tribuna de Lisboa, jornal feito com base nos arquivos do Diário de Lisboa, do Diário de Notícias e do Expresso, depois impresso em papel de jornal pelo departamento gráfico da produtora. Muitas vezes, é essa mesma equipa de designers que tem de recriar rótulos e invólucros quando já não se encontram os originais, como de maços de cigarros, garrafas de refrigerantes e de vinho ou caixas de chocolate em pó.
Para desenhar a redação do Tribuna de Lisboa, com a clássica desarrumação em cima das secretárias – com papéis e jornais por toda a parte, candeeiros de mesa, cinzeiros cheios de beatas, máquinas de escrever, pisa-papéis, telefonias e telefones antigos –, Clara Vinhais foi buscar inspiração ao filme O Lugar do Morto, que retrata precisamente uma redação em 1984, mas também ao jornal O Século, que ocupou dois edifícios na rua com o mesmo nome no Bairro Alto, e cujas fachadas servem agora de décor natural. “No primeiro Conta-me, tive mais dificuldades, pois não havia compras online de artigos em segunda mão”, lembra a diretora de arte. “Nesta produção, não há réplicas”, garante.
No elenco, ninguém está envelhecido com falso cabelo branco ou rugas feitas pela maquilhagem. “Agrada-me muito poder trabalhar com a idade que tenho”, enfatiza Miguel Guilherme, de 61 anos. A Rute Correia, figurinista da série desde o seu início (2007), bastou-lhe envelhecer as personagens mais novas e às mais velhas dar-lhes o toque da contemporaneidade dos anos 80. Numa época em que “as pessoas tinham pudor em vestir cor”, os homens usavam calças de ganga e camisa de meia manga, com mocassins e meia branca. A personagem de Rita Blanco vai deixando as malhas dos twin sets para usar camiseiros e vestidos. A atriz Rita Brütt perderá o seu ar blasé ao vestir blusas mais clássicas. Catarina Avelar, agora também no papel de bisavó, em vez do tradicional coque, tem um novo corte de cabelo que a rejuvenesce.
Para vestir Susana, que representa o princípio da adolescência, com os excessos e a liberdade da época, Rute Correia fez o que qualquer mãe faria: foi repescar a roupa da irmã mais velha. Arrumadas nos armazéns da produtora, lá estavam os figurinos vestidos, há uma década, pela atriz Rita Brütt, a que acrescentou as leggings à Jane Fonda, com algum brilho, o maillot e as perneiras. Rute Correia passa a vida à procura de roupa em segunda mão em armazéns antigos ou na Feira da Ladra. Muitas vezes são os mais velhos, os donos dos armazéns em extinção, que a ajudam, lembrando-se do que vendiam naqueles anos. Já conseguiu descobrir um fornecedor de calças de ganga novas, feitas em Portugal, com os modelos iguais aos dos anos 80, e as camisas com colarinho clássico da Triple Marfel, marca portuguesa com 73 anos.
No cabelo, era o boom das permanentes, das franjas e das popas. Tudo tinha de fazer pendant. Numa sociedade em que as pessoas tinham pouco o hábito de se arranjar, os jovens arrojavam na maquilhagem, com sombras nacaradas em laranjas, verdes e azuis e batons brilhantes. Nucha Araújo, responsável pela caracterização, não tem dúvidas: “As rugas da vida real são a grande vantagem desta produção.”
Uma sociedade a fervilhar
Para Rita Blanco voltar a fazer o Conta-me Como Foi, teria de ser com o mesmo elenco, mas também a mesma equipa de bastidores e um realizador que entendesse o projeto – Hugo Xavier foi assistente de realização em temporadas anteriores. “Era muito importante manter a coesão, porque foi isso que fez o Conta-me”, explica a protagonista, de 56 anos. “Quando voltámos a encontrar-nos, não parecia que tinham passado dez anos. Uma série é, supostamente, um trabalho mais cuidado ao nível televisivo do que uma telenovela. Tem um cuidado na escrita, em termos de personagens que podemos desenvolver… É um gosto.”
Com a equipa de guionistas mais presente no estúdio, esta produção funciona quase como se fosse teatro: nos ensaios de mesa com os atores, colocam-se questões sobre o texto e as personagens. “A primeira leitura do primeiro guião parecia mais um almoço de domingo da família Lopes”, descreve Francisco Barbosa.
Para envelhecer a sua personagem, que passa a usar expressões como “ai que giro!”, Rita Blanco foi buscar “a mesma Margarida, mas com novos acontecimentos, com mais liberdade, mais informação disponível e mais felicidade”. Para a atriz, que vem de uma família antifascista (o seu padrasto esteve preso durante oito anos), o 25 de Abril foi muito importante para se “deixar de viver com medo de falar, de ser preso e torturado”. Nos anos 80, Rita Blanco andava a estudar e frequentava a discoteca Frágil, no Bairro Alto: “Era diferente de tudo, era o lugar onde tudo podia acontecer e onde havia uma liberdade e uma possibilidade de se ser quem se era. Ninguém estava ali para criticar e havia muitas ideias.”
Era um Portugal a acordar para a influência do pós-modernismo na música, na pintura e nas artes plásticas. Naquele tempo, Miguel Guilherme ainda morava em casa da mãe, mas já trabalhava e estava muito ligado à cena artística. “A sociedade dos anos 80 é uma sociedade de rutura com tudo o que vinha de trás. Há uma abertura e uma tentativa de modernização muito diferentes dos anos 70, mesmo do pós-Revolução. Mas a principal diferença é que o Carlitos agora é um adulto. Toda a relação familiar está completamente diferente. Os Lopes têm muito menos gente em casa, apesar da filha adotiva. Eles não se modernizam, eles continuam ocupados com a sua vida, a cuidar dos netos, do bem-estar dos filhos, dos seus pequenos negócios e de vez em quando lá falam de política, mas não são atores dessa mudança”, descreve Miguel Guilherme. “Estou a tentar dar uma espessura ao meu personagem que ele não tinha antes. A minha relação com a Margarida está mais desgastada, é cada vez mais rotineira e isso reflete-se no argumento.”
Sem o ritmo dos telemóveis, foram precisos vários esquemas mentais para descortinar a forma como se pensavam determinados assuntos entre 1984 e 1987, da sexualidade à política, do futuro às questões de género, tão em voga. “O desafio foi preencher o vazio de dez anos, construindo uma biografia de todos os personagens”, diz Pedro Lopes, diretor de conteúdos da SP Televisão. A escrita do Conta-me foi interrompida em 2009, ao contrário de Espanha, onde o original Cuéntame Cómo Pasó (2001) nunca parou – vai na 20ª temporada, com 358 episódios, desde a ditadura de Franco até ao final dos anos 80. “O Conta-me português desviou-se muito do espanhol, porque há sempre uma base histórica e a nossa História não tem nada que ver com a de Espanha. O nosso processo foi ver o que estava feito por lá, o que se podia aproveitar ou não, e ao mesmo tempo perceber em que ponto estavam os nossos personagens e como evoluiriam naturalmente dentro do que foi a História portuguesa”, explica Miguel Simal.
Usando uma certa “escrita de método”, no último ano, todos os dias Miguel leu jornais da data que estava a tratar. Se agora pode não saber de cor os nomes dos atuais ministros, os de 1984 estão-lhe na ponta da língua. Já nas temporadas anteriores, os atores do elenco infantil concordavam que a sua participação no Conta-me os ajudou na matéria de História do 6° ano, quando estudaram os anos de ditadura e a transição para a democracia. Ficaram a saber a data em que Salazar caiu da cadeira (1968), por exemplo. Para Pedro Lopes, mais do que uma série política, o Conta-me é uma série sociológica, das vivências, em que “a democracia é também uma jovem adulta”.
Estes são alguns dos momentos entre 1984 e 1987 que vão ser retratados nos 52 novos episódios de “Conta-me Como Foi”
. Governo do Bloco Central, liderado por Mário Soares (1983/85)
. Segunda intervenção do FMI (1983/84)
. Primeiro caso de sida registado em Portugal (1983)
. Exibição de “O Tal Canal”, de Herman José (1983/84)
. Portugal perde com a França na semifinal do campeonato europeu de 1984
. Carlos Lopes conquista o ouro na maratona dos Jogos Olímpicos de Los Angeles (1984)
. Detenção da agiota Dona Branca (1984)
. O maior acidente ferroviário em Portugal, que matou mais de 150 pessoas em Alcafache, na linha da Beira Alta (1985)
. Assinatura do tratado de adesão de Portugal à CEE (1985)
. Disputa pela Presidência da República entre Mário Soares e Freitas do Amaral (1986)
. Primeira maioria absoluta de Cavaco Silva (1987)