“Pertenço à raça dos que percorrem o labirinto/sem nunca perderem o fio de linho da palavra”, escreveu Sophia no poema Creta. E é a sua palavra que é amplamente celebrada cem anos depois do nascimento desta poeta maior, a 6 de novembro de 1919, através de uma vasta programação que tem início já neste segundo sábado de janeiro. Mas se a palavra está obviamente presente numa comemoração que se estende além-Portugal, as várias inciativas deste centenário contemplam outras artes presentes na ampla esfera de afetos e influências de Sophia, como a dança, a música, as artes plásticas, o cinema, o teatro. Ancorada no Centro Nacional de Cultura (instituição em que a poeta e o marido, o jornalista Francisco Sousa Tavares, assumiram funções de direção no fim da década de 1950, tendo-a transformado numa casa livre e eclética nos tempos difíceis de ditadura), a Comissão das Comemorações do Centenário de Sophia de Mello Breyner Andresen defende, em manifesto, que comemorar Sophia é “lembrá-la em comum”. Uma ideia espoletada há ano e meio pela filha Maria Andresen, poeta e académica que integra a comissão coordenadora (com Federico Bertolazzi, Fernando Cabral Martins, Guilherme d’Oliveira Martins e José Manuel dos Santos), e que defende a ambição e internacionalização da homenagem – que, sublinha, ainda tem trunfos por revelar ao longo de 2019.
Estas comemorações contam igualmente com um programa paralelo criado em torno da Galeria da Biodiversidade – Centro de Ciência Viva, no Porto (antiga casa da aristocrática família Andresen), cuja curadoria é assumida pelo maestro Martim Sousa Tavares. O neto mais novo de Sophia procurou criar uma programação geradora de conteúdos novos e inéditos, declara, fazendo encomendas criativas que estabelecem pontes entre passado, presente e futuro. “A minha avó sempre foi uma pessoa muito generosa com outros criadores e com as gerações mais novas. E, aqui, encontrámos uma maneira dela ser a figura central, ao lado de outros artistas e autores, inspirados a criar pela sua obra.” Eis como bem celebrar Sophia em 2019:
Música, dança e teatro
As celebrações do centenário de Sophia começam já este sábado, dia 12 de janeiro: O Cavaleiro da Dinamarca, projeto de dança clássica e contemporânea que homenageia os clássicos infantojuvenis, escritos por Sophia e publicados entre 1958 e 1985, sobe ao palco do Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, às 16h e às 21h. Com libreto de Paulo Ferreira e Pedro Mateus, composição musical de Daniel Schvetz e cenografia de José Manuel Castanheira, o espetáculo dedicado ao cavaleiro dinamarquês em peregrinação à Terra Santa une literatura, dança, música e audiovisual, numa interpretação dos alunos da Escola Artística de Dança do Conservatório Nacional, com a colaboração da Escola Artística de Música do Conservatório Nacional.
Também orientado para o público infantojuvenil, o conto musical A Menina do Mar, baseado numa das obras mais famosas de Sophia, estreia em Maio no Teatro LU.CA, em Lisboa – está ainda programada uma apresentação especial da peça, sem cenários, na antiga Casa Andresen, no dia de nascimento de Sophia. Com encenação de Ricardo Neves-Neves, direção musical de Martim Sousa Tavares, música de Edward Luiz Ayres d’Abreu, e a interpretação de Catarina Rôlo Salgueiro, Eduardo Breda, Nuno Nolasco, Rafael Gomes e Teresa Coutinho, a peça produzida pelo MPMP – Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa tem agendada uma digressão posterior por várias cidades do país.
Resultante da parceria entre MPMP e Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto, é o Prémio Musa: uma celebração musical do centenário da poeta que procura “distinguir a excelência musical da composição contemporânea de tradição erudita ocidental”. Às partituras a concurso (que podem ser enviadas até fim de janeiro) pede-se que partam da poesia da autora de Navegações e que sejam escritas para um coro a capella. O autor premiado pelo júri (composto pelo compositor João Pedro Oliveira e pelos maestros Pedro Teixeira e Martim Sousa Tavares) terá um prémio pecuniário de €3 mil, estreia num concerto coral dedicado a Sophia a realizar-se na Casa Andresen, e a gravação das suas partituras pelo Ensemble MPMP. “Este prémio toma o título de um dos livros de Sophia, Musa, que está dividido em andamentos como se fosse música. A ideia foi acrescentar corpo de obra ao repertório, francamente bom, de música clássica baseado na poesia da minha avó, em que os compositores têm liberdade para abordar um ou mais poemas seus. É um apelo à criatividade, em que damos espaço a compositores para que possam brilhar a partir desta grande obra”, diz Martim Sousa Tavares à VISÃO. A entrega do Prémio Musa será feita a 21 de março.
Entre junho e julho, o teatro ganha mais palco nestas celebrações. Martim Sousa Tavares encomendou três peças de teatro para crianças às autoras Tatiana Salem Levy e Flávia Lins, inspiradas em três momentos do jardim da antiga casa dos Andresen: o amanhecer, o entardecer e o anoitecer. Uma co-produção com o Teatro do Bolhão, com encenação de Anabela Sousa, que pretende oferecer uma experiência imersiva nos cenários da família. Uma outra encomenda do maestro-curador foi o convite ao compositor Eurico Carrapatoso para criar uma música original para a leitura encenada de A Noite de Natal, de que resultou uma peça para harpa, piano, narrador e ator para o conto clássico criado por Sophia em 1959, que terá ainda uma projeção de ilustrações originais da autoria de Mariana a Miserável.
A 6 de novembro, data em que se cumprem cem anos do nascimento de Sophia, tem lugar um dos destaques da programação do centenário: o Concerto Comemorativo da Orquestra Sinfónica Portuguesa, que terá lugar no Teatro Nacional de São Carlos, em Lisboa, com um programa igualmente inspirado na obra da poeta e que apresentará novos talentos do canto lírico nacional, ao qual se seguirá uma sessão solene. E, refere Maria Andresen à VISÃO, estão previstas outras iniciativas, como a realização de três dias dedicados a Sophia, uma celebração com espetáculos com palavra e música, incluindo um concerto de Filipe Raposo, no Palácio de Belém; e a reedição em CD de A Menina do Mar, que recupera o disco editado em 1959 com música do maestro Fernando Lopes-Graça e voz de Eunice Munõz. Em estudo, refere ainda Maria Andresen, estão outros projetos de grande fôlego: um monumento dedicado a Sophia, expandido em azulejo a partir de um cartão feito pela artista plástica Menez com poemas de Sophia, e um grande prémio dedicado às artes.
Artes plásticas
Pour ma Sofie, exposição fotográfica e documental inédita de Oxana Ianin, realizada a partir da biblioteca pessoal de Sophia, inaugura a 25 de janeiro na Galeria da Biodiversidade. Aí, revela-se uma visão sobre 331 livros com dedicatórias de autores tão diversos como Agustina, Eugénio de Andrade, Herberto, Saramago, Torga, Teixeira de Pascoaes, Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade – um espólio inventariado e comissariado por Martim Sousa Tavares e que será objeto de itinerância em Portugal, Brasil e, provavelmente, Grécia. Uma outra exposição documental, comissariada por Marina Bairrão Ruivo e Sandra Santos, é revelada a 15 de maio no Museu Arpad Szenes-Vieira da Silva, em Lisboa: centrada na relação de amizade de Sophia com o casal de pintores, apresenta obras de Vieira e Arpad, quadros hoje presentes nas casas dos filhos da poeta, assim como cartas trocadas entre as amigas Sophia e Vieira. Ainda com data a anunciar, a mostra itinerante Lugares de Sophia propõe-se apresentar fotografias de António Jorge Silva, Duarte Belo e Pedro Tropa, convidados a produzir uma “interpretação visual da relação poética de Sophia de Mello Breyner Andresen com os lugares, com especial referência à paisagem marítima”.
Colóquios e leituras
Vários colóquios e conferências dedicados a Sophia terão lugar ao longo deste ano. A Fundação Calouste Gulbenkian recebe, nos dias 16 e 17 de maio, diversos especialistas nacionais e internacionais que discutirão a obra de Sophia, distribuídos por quatro mesas redondas e por uma vintena de comunicações. A 3 de outubro, também o Centro Cultural de Lagos acolherá outro colóquio, intitulado O Mediterrâneo e o Atlântico em Sophia, dedicado a explorar a importância do mar e a presença do sagrado na poesia da escritora, o diálogo com os poetas do sul e a importância dos contos para crianças. Durante os meses de novembro e de dezembro, um ciclo de conferências sobre Sophia e as Artes ocorrerá ainda na Fundação de Serralves e na Biblioteca Almeida Garrett, no Porto: Sophia e a Música terá uma conversa de Pedro Eiras e Álvaro Teixeira Lopes, moderada por Ana Luísa Amaral; Sophia e a Dança conta com Carlos Mendes de Sousa e Joana Providência, sob a moderação de Ana Paula Coutinho; Sophia e as Artes Plásticas apresenta Maria Filomena Molder e Nuno Faria em debate, moderados por Isabel Pires de Lima; Sophia e a Forma tem Maria Irene Ramalho á conversa com Teresa Andresen, e moderação de Rosa Maria Martelo.
Também fora de Portugal, estão previstas outras iniciativas de cariz literário e académico: a 12 de junho, tem lugar um colóquio internacional em Roma, reunindo várias gerações de estudiosos da obra de Sophia. Entre 2 e 5 de setembro, será a vez do Rio de Janeiro receber outro colóquio, desta feita dedicado às obras tanto de Jorge de Sena como de Sophia de Mello Breyner Andresen – amigos que mantiveram uma longa relação epistolar em que literatura, política e afetos se cosiam entre linhas. Organizado por Gilda Santos, Eucanãa Ferraz, Luci Ruas e Teresa Cerdeira, o encontro internacional será acompanhado por recitais de poemas, exibição de filmes, concurso de ensaios e lançamento de livros.
Cinema e edições
Da programação do centenário, fazem ainda parte a palavra dita e os filmes. Estão previstos ciclos de cinema relacionados com a vida e obra de Sophia, nomeadamente na Cinemateca Portuguesa, escolhidos por Maria Andresen, Margarida Gil, Rita Azevedo Gomes, José Manuel Costa e Manuel Mozos: uma seleção de filmes sobre a poeta portuguesa, masa que se juntam também obras que refletem os seus gostos pessoais. À espera de aprovação, estão igualmente os projetos cinematográficos dedicados a Sophia dos realizadores Margarida Gil (que planeia a adaptação cinematográfica de A Viagem, por si definido como “um conto que condensa toda a poesia de Sophia em prosa”) e Manuel Mozos (que prepara o documentário Sophia).
E do ecrã passamos para a palavra dita: os Poetas do Povo realizam quatro sessões dedicadas à poeta: O Mar de Sophia (21 de janeiro), Sophia: Liberdade (25 de março), Sophia: A Poesia das Ilhas (24 de junho) Sophia e os Clássicos (23 de setembro), a terem lugar no Povo-Lisboa, ao Cais do Sodré, em Lisboa. As celebrações continuam a 21 de março, Dia Mundial da Poesia: várias figuras declamarão poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen no Menina e Moça Livraria Bar, tendo acompanhamento musical, exibição de imagens e uma instalação criada com versos da autora. Também no espírito desta efeméride, o CCB homenageará a autora de Livro Sexto com um programa coordenado por José Manuel dos Santos: feira do livro, leituras, conferências e programação para os mais novos, a partir das 14h.
Por fim, em datas ainda a anunciar, o coletivo Lisbon Poetry Orchestra apresentará o espetáculo multimédia O Mundo de Sophia, contando com as vozes dos atores André Gago e Miguel Borges, e dos declamadores Nuno Miguel Guedes e Paula Cortes, e ainda com o quarteto de cordas Naked Lunch. Está ainda prevista a edição de um livro/CD.
O 2019 em que celebramos Sophia de Mello Breyner Andresen não ficaria completo sem a publicação de vários livros dedicados à obra da autora. Caso do volume sobre a Antiguidade Clássica, coordenado e organizado por Maria Andresen, e prefaciado por José Pedro Serra, que reúne essa obra de Sophia há muito esgotada, O Nu na Antiguidade Clássica, a uma antologia de poemas seus sobre Grécia e Roma (edição Assírio & Alvim). Também anunciada pela comissão organizadora do centenário, está um livro com a “prosa ficcional” de Sophia, coordenado por Carlos Mendes de Sousa, uma seleção de prosas dispersas (englobando intervenções em jornais, entrevistas, críticas e ensaios) organizada por Federico Bertolazzi, e uma antologia de poemas bilingue com tradução de Richard Zenith. Um centenário em cheio.