Quando fez o check-in no aeroporto de Lisboa, dez dias antes de entregar uma escultura de cinco metros por sete à cidade do Rio de Janeiro, Artur Bordalo, 31 anos, era um viajante como outro qualquer. Na mala, levava apenas o que o comum dos turistas transporta quando vai ao Brasil: fatos de banho, chinelos de praia, t-shirts, calções e uma camisa para certas ocasiões. Na bagagem de mão ia também uma folha com uma fotografia impressa de um lobo-guará, animal da América do Sul, em vias de extinção – e esse simples pormenor transforma-o, de imediato, em Bordalo II.
É assim, em modo artista, que o encontramos na Cidade das Artes, na zona periférica da Barra da Tijuca, a dar os últimos retoques à sua colorida obra, um enorme animal que salta à vista de qualquer pessoa que entra no arejado átrio deste edifício moderno (a meio caminho entre um CCB e uma Casa da Música, à dimensão brasileira). A altura do bicho permite-lhe andar agachado por baixo dele, em traje de trabalho, mãos sujas e olhar concentrado. Também se vê por perto um escadote tombado que há de ter ajudado a chegar aos pontos mais altos desta escultura composta por resíduos, uma das mais recentes da série Plastic Trash Animals.
A seu lado está sempre o assistente, João Pedro Sobral, 24 anos, de tronco e tatuagens à vista. A mulher, Mariana, ronda-os, num vaivém atento, sem interferir no processo criativo. Nem sempre pode acompanhá-los nas viagens profissionais, mas Brasil é Brasil e não se desperdiça uma oportunidade destas.
Pelo chão, há latas de grafitar de todas as cores, cabos elétricos, parafusos (as peças de plástico são aparafusadas umas às outras), berbequins, baterias a carregar, rebarbadoras, pedaços de desperdícios… Outros já estão a cobrir a estrutura de madeira que deu corpo ao animal e, apesar de alguns estarem fragmentados, dá para identificar facilmente bocados de caixotes do lixo, rodas de bicicletas ou para-choques de automóveis. No ar, ouve-se uma espécie de techno jazz.
O dia acaba cedo no Rio de Janeiro e, nessa altura, o vento acentua-se na Cidade das Artes, nos arrabaldes da urbe. João Pedro é obrigado a vestir uma t-shirt e Bordalo sai de baixo do bicho, levando uma das mãos às costas, em sinal de cansaço: “Não consigo relaxar enquanto o trabalho não está terminado.”
Ainda hão de ir buscar mais material ao armazém, onde trabalharam antes de transportar o lobo-guará em cima de um porta-paletes para o átrio em que agora se encontra, à vista de todos. Bordalo corta as peças de plástico coloridas com uma serra elétrica, de forma aparentemente aleatória; mas, na verdade, já sabe exatamente onde elas vão encaixar-se.
Deixar de ser egocêntrico
Voltemos ao passageiro anónimo e discreto que deixa Lisboa para trás com três encomendas na bagagem: além do lobo-guará para doar ao Rio de Janeiro, uma preguiça e uma arara para viajarem até São Paulo. A ave, também ela, como o lobo, uma encomenda do Turismo de Portugal, haveria de fixar-se numa parede do bairro paulista da Lapa e a ave já está a ornamentar a entrada de um centro de reciclagem (trata-se de um pedido particular).
No passaporte, lê-se Artur Bordalo, com nascimento registado em Lisboa, no ano de 1987. O documento oficial não revela a sua ascendência, mas sabe-se que é neto do pintor Real Bordalo (morreu no ano passado), conhecido pelos óleos e aguarelas que retratam a sua cidade, Lisboa. Desde cedo, o jovem Artur mostrou o seu dom para as artes, quer nas tardes passadas a ver o avô pintar, na casa de Colares, quer desenhando a torto e a direito, sobretudo dinossauros. Naturalmente, foi parar ao curso de Pintura, da Faculdade de Belas-Artes, da Universidade de Lisboa, só que as disciplinas teóricas tiveram o efeito de afastá-lo… Nunca terminou a licenciatura, mas adorou experimentar técnicas como cerâmica e escultura que acabaram por influenciar o seu percurso artístico. Entretanto, foi dando largas à criatividade nas paredes de Lisboa, de modo clandestino. “Ser graffiter é demasiado egocêntrico para mim”, justifica assim o abandono da atividade ainda ilegal. No entanto, foi bom enquanto durou, que é como quem diz, mais ou menos até 2012. Nessa altura, virou-se a sério para o tipo de trabalho que hoje é reconhecido em 20 países, através de 88 peças (só 20% estão expostas em Portugal).
A consciência ambiental é transversal a tudo o que leva a assinatura Bordalo II: desde os animais que escolhe representar (quase todos, de alguma forma, ameaçados) aos materiais usados nas suas representações, sempre restos e resíduos resultantes da inconsciência da sociedade de consumo. Não admira, pois, que decrete: “Quero fazer parte de um alerta ambiental, social e ecológico.” Até à exposição Attero (que significa desperdício em latim), a primeira em nome individual – esteve aberta ao público em novembro, no seu atelier no número 48 da Rua de Xabregas –, tinha recolhido e usado 28 toneladas de lixo. Seis meses depois, os números já se tornaram secundários e nem ele os sabe de cor. Mas fica registado: “A quantidade é meramente simbólica, o que deve ter significado é a mensagem.”
Bordalo II ainda cria nessa zona periférica da cidade para dar forma aos seus trabalhos de grandes dimensões, e é lá que guarda uma pilha de detritos que vai recolhendo em armazéns abandonados, terrenos baldios ou centros de reciclagem. À porta deste atelier é visível o chimpanzé que construiu por ocasião dessa exposição. Uns metros mais à frente, na mesma rua, ainda resiste um sapo pregado na parede, que obriga a uma paragem para decifrar a obra. São apenas dois exemplares dos muitos que o artista tem espalhados pelo País, de Bragança a Beja, assim se conservem, porque a arte urbana, já se sabe, tende a ser bastante efémera. A maior parte das obras que produz é fruto de encomendas, muitas vezes de museus ou festivais – o primeiro foi do Walk&Talk, nos Açores, em 2013. Nem sempre pede dinheiro para as executar, como neste caso do Rio, a Cidade Maravilhosa, mas já consegue viver da sua arte.
Uma bola vazia como mascote
Além da folha com a fotografia do lobo-guará, antes de aterrar no Brasil, Bordalo II já tinha a noção da dimensão da peça que queria doar. Não significa isso que, na hora, não haja ajustes, consoante o material que consegue resgatar. Desta vez foi fácil encontrar toda a matéria-prima, depois de entrar em contacto com a rede de cooperativas de reciclagem de resíduos sólidos do Rio de Janeiro, que recebe detritos de 120 caçadores de lixo, homens e mulheres que apanham detritos nesta cidade com mais de cinco milhões de habitantes. “Ele mesmo escolheu aquilo de que precisava e levou um camião com 300 quilos de peças”, conta Luiz Carlos Santiago, o dono do centro, sem esconder algum orgulho por ter participado numa das maiores obras de Bordalo II. “Teve de vir um artista de Portugal para nos mostrar o valor que pode ter o lixo.” Antes de posar para o telemóvel de Camila, sua companheira na empresa e na vida, junto ao lobo em extinção, Luiz Carlos reconhece um pedaço de mangueira que serve agora para delinear os dedos de uma das patas. “Vou usar esta imagem como símbolo do meu centro de reciclagem”, garante, num carregado sotaque carioca.
Numa das incursões à procura de matéria-prima para as suas obras, Artur e João Pedro encontraram uma bola de futebol, meio vazia, num aterro em São Francisco, nos EUA. Desde então, levam-na para todo o lado, como se fosse uma mascote – sempre que precisam de uma pausa, são os pontapés que trocam entre os dois, passando a bola de um para o outro, que lhes devolvem o alento para continuar.
Apesar de demorarem cerca de uma semana a pôr de pé uma estrutura desta dimensão (neste caso, foi preciso reforçá-la com metal, passo concretizado por uma equipa brasileira, atrasando o trabalho dos dois portugueses), os amigos tentam aproveitar alguma coisa dos países por onde passam. Estão no Rio pela primeira vez e, por isso, não quiseram deixar de se estrear na asa-delta, aterrando na Praia de São Conrado, como qualquer carioca praticante da modalidade, e tampouco dispensaram uma ida ao turístico Morro do Pão de Açúcar. Bordalo II ainda arranjou tempo para coordenar um workshop com o artista francês JR, na Casa Amarela, um centro cultural educativo que cativa miúdos a viver no Morro da Providência, a favela mais antiga do Brasil. “Lá, consegue-se ter uma perceção melhor do que é a falta de qualidade de vida provocada pela ausência de consciência ecológica. Mas nos condomínios privados, a preocupação não é maior. Como costumo resumir: carteira cheia, cabeça vazia. Educação não tem nada que ver com riqueza.” Dito isto, lembra-se logo de exemplificar o seu pensamento com o desastre ambiental que vê nos EUA, onde já esteve por várias vezes a trabalhar. “A Europa será o conjunto de países que está mais avançado na tentativa de resolução destes problemas”, remata.
Furacão da arte
Na Cidade das Artes é dia de festa. Inaugura-se o Portugal 360, festival dedicado exclusivamente ao nosso país e que ocupará este espaço cultural nos próximos quatro dias. Bordalo II faz parte da celebração – ele é uma das faces visíveis da contemporaneidade nacional que se quer mostrar no Brasil.
A enorme peça feita de plásticos coloridos (muitas vezes, graças às suas latas de tinta) que iriam ser reciclados está pronta, assim o comprova a assinatura a tinta branca na pata traseira esquerda, deixada a escorrer na véspera, antes de saírem para um jantar nas redondezas, que serviu para descomprimir de dias e dias de trabalho intenso.
Hoje, Artur Bordalo veste a sua melhor camisa, trocou os chinelos por ténis e os calções de banho por uns de andar na rua, deixando à vista as tatuagens nas pernas. Sempre a seu lado, Mariana, elegante no seu vestido preto e branco às bolas, acarinha-o. E ouvem Luís Araújo, presidente do Turismo de Portugal, elogiar a sua obra, um símbolo de como o País está diferente, mais “aberto e inclusivo”.
No palco de uma das salas principais da Cidade das Artes, lotada com convidados para a inauguração do festival lusitano, a atriz Bel Kutner, diretora criativa, anuncia Bordalo II com uma mão-cheia de adjetivos hiperbólicos, bem ao jeito brasileiro: um “furacão da Arte”, o artista “incansável” que passou dias e noites a construir o animal da fauna brasileira, resultando numa “obra maravilhosa”. A seguir a um pequeno vídeo que explica bem a filosofia do seu trabalho, Bordalo II sobe ao palanque e, em frente a um microfone, convida todos a espreitarem o seu lobo-guará – como se fosse possível que até ao momento alguém não tivesse reparado naquela colorida escultura e na mensagem que está por detrás de um bicho composto de lixo recolhido num centro de reciclagem. “Não tenho muito a dizer”, seria o seu remate em palco, revelando um desajeitado desconforto por sentir tanta atenção centrada em si. No Rio, e também no resto do mundo.