Vamos começar este texto com um parêntesis. Sabemos que não é usual, nem graficamente apelativo, mas tem de ser: (Supperclub – usamos a palavra inglesa porque são precisas várias em português para descrever o conceito – é uma espécie de restaurante, em casas particulares. Trata-se de uma experiência intimista e mais acolhedora do que as que estamos habituados em locais públicos.)
Dois dias antes de entrarmos neste Boato, recebemos uma mensagem por WhatsApp com a sua localização e com meia dúzia de conselhos vínicos para que o pairing entre o que se vai beber e comer resulte melhor – primeiro os brancos, que os tintos guardam-se para a segunda parte do menu de degustação que será servido pelo chefe Miguel Ângelo. As bebidas são da responsabilidade de cada comensal, mas a ideia é partilhá-las com o resto da mesa. Tal e qual como fazemos quando vamos jantar a casa de amigos. A ideia da partilha, aliás, é transversal a toda a experiência.
Quando chegamos a esta casa, nos Olivais, em Lisboa, já lá estão os outros curiosos que arriscaram a sentarem-se com desconhecidos, para um jantar de sexta-feira à noite. Rita Pinto, 31 anos, é a namorada do chefe e também vive neste T1 acolhedor, encarregando-se de tudo o que tenha a ver com a comunicação deste projeto. E também serve à mesa, claro.
Nenhum deles nos dá pistas sobre o que vamos comer, mantendo um propositado mistério. Deixemo-nos ir que o menu tem 10 pratos (€50) – isso sabemos de antemão – será baseado nas experiências que o chefe teve nas suas viagens gastronómicas, adiantam-nos perante as perguntas insistentes. A coisa promete e não vai desiludir – sim, somos spoilers, mas sem entrar em pormenores.
Depois de um brinde quebra-gelo logo à entrada, e de observarmos os últimos retoques do chefe na sua cozinha, passamos para a mesa, arrumada à justa na pequena sala de jantar. À justa, mas está lá tudo: a toalha branca, impecavelmente passada, os guardanapos, os copos elegantes, as cerâmicas artesanais a ornamentar o centro e a loiça bonita, que se adapta a cada prato. A luz é ténue e há uma grinalda que contorna a janela que tem a persiana para baixo para não incomodar os vizinhos. Algumas polaroids de outros boatos estão à mão de se olhar, para que se ateste como foram sorridentes os convívios anteriores.
Caso não haja empatia imediata entre quem aqui se senta, encontramos umas cartinhas de jogar, com afirmações e perguntas que podem rolar entre todos. Rita explica, enquanto traz o pão e a manteiga da kitchenette (a única coisa que não sai das mãos do chefe), que criaram esta espécie de jogo depois de uma vez terem entrado na sala e encontrado um silêncio incomodativo entre as pessoas. Assim, já não há desculpas… Nada disto se aplica, claro, se as pessoas já se conhecerem entre si. Nesta noite, por exemplo, havia uns repetentes e até familiares dos responsáveis pelo Boato. Foi fácil soltar a conversa, apesar das diferenças entre todos (até de idade).
A cavala à Bulhão Pato inaugura o desfile que se prolongará noite dentro – o Boato não tem hora para acabar. O chefe vem à sala e explica como chegou até a esta versão da receita típica portuguesa (há de fazê-lo em todos os momentos) e até parece fácil. Diz que fez uma marinada com sal e açúcar e temperou o peixe com alho e limão. “Bom apetite! Até já”, eis a assinatura de Miguel Ângelo.

Seguem-se uns croquetes de camarão, ao estilo espanhol, com base de bechamel, que se comem com as mãos, mas deixam marcas. Depois, em cima de um azulejo bem português, há de vir uma das mais icónicas receitas deste Boato que se espalha desde outubro passado: o pastel de nata que, apesar da massa clássica que o rodeia, e do aparente creme de ovo (na verdade é molho holandês), está recheado de coxa de pato confitada. Ainda mal pousou na mesa e este snack já está em pose para o Instagram. A versão de Miguel do italianíssimo maritozzo, um brioche com chantilly, é salgada e está recheada, imagine-se, de escabeche de mexilhão. Na verdade, come-se quase de um trago só.
Não é suposto revelar-se todo o menu, pois a surpresa faz parte desta mise-en-scene que vai muito para lá da comida, mas não resistimos a dar mais uma ou duas pinceladas gastronómicas nesta prosa. Na verdade, por muito que se descrevam os pratos, nada substitui o palato e as sensações que ele nos dá depois de provarmos as combinações pouco prováveis deste chefe. Pode lá imaginar quão bom foi comer o prato outonal, em que impera uma bolacha de farinha de cogumelos acamada num delicioso creme de castanhas, tal como atesta a foto em baixo?

O resto da passagem de modelos há de incluir um simples esparguete com manteiga fumada e pó de cebola (poderia lá faltar uma bela pasta, quando Itália está subjacente enquanto influência?), um robalo cozinhado a baixa temperatura (Miguel ainda não tem fornecedores fixos para este menu, vai procurando-os consoante aquilo de que precisa) e uma perninha de codorniz com cebola caramelizada.
Este trio vem precisamente antes de duas sobremesas surpreendentes. Uma leva-nos até à Índia, através de um gelado de lima e coentros com merengue de cardamomo verde – a explicação parece complexa, mas o resultado é de uma frescura na medida certa, sem nos inundar de açúcar. A outra trata-se de um quente e frio especial e talvez um pouco pesado para esta altura da refeição. Falamos de um brioche para molhar num creme de cappuccino, “uma lembrança dos meus pequenos-almoços em Turim”, remata Miguel. Depois disto, ficamos de pernas para o ar. Valha-nos seguir-se um programa que mete dança para desmoer este festim de surpresas e de nova gastronomia que não se limita a alimentar-nos, mas também nos conta histórias e cria memórias irrepetíveis.
No final, há um jogo sobre o qual não posso alongar-me sob pena de estragar a surpresa. Não é obrigado entrar nele, claro, mas saibam que, depois desta brincadeira, nunca sai daqui ninguém mal disposto. Aliás, note-se, já houve encontros destes que acabaram num grupo de WhatsApp.
Quem é o chefe que nos serve?

Miguel Ângelo, 33 anos, estudou na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa. Passou, ainda em modo estágio, pelo restaurante Il Gallo D’oro, na Madeira, com duas Estrelas Michelin, e pelo Eleven, com uma. Cansou-se do mundo estrelado nacional e aventurou-se por outras cozinhas da Europa. Esteve em Berlim, a convite do amigo Daniel Sangareau, foi a seguir para Barcelona, onde trabalhou no Nino Viejo, Hoja Santa e Mont Bar, e depois para Turim, em que chefiou equipas no Al Garamond e no Eragoffi. Quando regressa a Lisboa, Miguel decide ficar de fora das grandes cozinhas e concentrar-se no seu aconchegante Boato. Além das refeições que concebe em sua casa, e que no futuro podem ser a quatro mãos, também atende a pedidos para servir o catering noutras paragens. E, boa notícia para os mais gulosos, vende para fora a sobremesa de brioche para molhar num creme de cappuccino.
Boato > Todas as sextas 20h > Reservas pelo Instagram: https://boato.simplybook.it/v2/ ou info.boatosupper@gmail.com > 50€ sem bebidas > 10 lugares