“Está tudo bem desse lado, já morreu alguém?”, dispara Michael Palin a meio da conversa com Ricardo Araújo Pereira, brincando, mais uma vez, com o frio que, fim de tarde já escura, se sente em Viseu e até obrigou o humorista português a pôr uma mantinha sobre as pernas. Esta primeira sessão do Festival Tinto no Branco estava prevista para um espaço fechado, junto ao Solar do Vinho Dão, mas prevendo a forte afluência de público, a organização decidiu optar pelo espaço aberto da entrada onde 540 cadeiras brancas não seriam suficientes para acomodar todos os interessados. Alguns aquecedores de pé alto tentavam, com um sucesso muito relativo, aquecer o ambiente. Essa missão foi muito melhor cumprida pelos dois homens em palco. Michael Palin, britânico de Sheffield, 74 anos, e Ricardo Araújo Pereira, esse mesmo, 43 anos.
“Olha, parece que sim, está ali um que já morreu.”, diz Palin.
“Não, não. Acho que está só a descansar…”, improvisa Ricardo, citando um dos sketches mais conhecidos dos Monty Python, o do Papagaio Morto. Mais à frente, Palin dirá que houve um dia em que percebeu que John Cleese foi um erro de casting para esse mesmo sketch. Margaret Thatcher teria sido uma escolha melhor. Recorda que quando alguém do seu staff político sugeriu à então primeira ministra encenar esse número num congresso do partido conservador, para se atirar aos trabalhistas, ela terá dito: “Mas quem é esse Monty Python, é dos nossos?”. Mesmo assim a ideia vingou. Veja por si quem ganha esta improvável batalha: Thatcher ou Cleese?
A apresentação de Michael Palin e Ricardo Araújo Pereira em Viseu não foi feita em modo de battle ou stand up comedy. Durante uma hora, o humorista português entrevistou aquele a quem chamou, logo no início, um “no ordinary man” (citando outro sketch dos Python, desta vez O Mecânico de Bicicleta).
A conversa andou quase sempre à volta dos tempos dos Monty Python mas começou pela vasta obra publicada de Michael Palin (notabilizado, por exemplo, pelas suas incursões na literatura de viagens, refazendo os percursos de Phileas Fogg, de Volta ao Mundo em 80 Dias, de Júlio Verne, ou de Ernest Hemingway). Palin aceitou os elogios mas relativizou-os dizendo que foi simplesmente um sortudo (um “lucky bastard“, para sermos exatos) e recordou que alimenta um diário desde o dia 16 de abril de 1969, na mesma altura em que deixou de fumar (depois de ter um filho) e teve que substituir um vício por outro. A transformação da sua vida, e das suas longas viagens, em narrativas é algo que o acompanha desde que, em miúdo, imitava na perfeição tiques e vozes dos professores. Hoje, sublinha Ricardo, benificia da tolerância da sua mulher que não lhe cobra as ausências exploratórias pelo mundo… Palin corrige: “É mais do que tolerante, Ricardo. Ela encoraja-me a ir embora. Uma vez regressei de uma viagem de dez meses e quando cheguei a casa tinha uma bilhete a dizer ‘hoje é noite de ir jogar badminton, o teu jantar está no forno'”.
Os melhores momentos foram aqueles em que se recordou a história dos míticos Monty Python. Ricardo, que já entrevistou John Cleese (para a VISÃO, recorde aqui) e escreveu o prefácio para a tradução portuguesa da sua autobiografia (“Mas porquê?! Estavas a precisar de dinheiro?”, disparou Palin), tem um interesse genuíno nas respostas, de humorista para humorista, parecendo, às vezes, de discípulo para mestre. Mas Michael Palin é, sobretudo, mestre em desvalorizar a revolução que os Python fizeram. Ou, pelo menos, o modo de lá chegar: “Uma série de acasos felizes” que, se não tivessem acontecido em 1969, provavelmente nunca mais aconteceriam. Já depois de chegarem à televisão tinham a seu favor o facto de na BBC ninguém lhes ligar nenhuma importância: “O programa dava muito tarde e, basicamente, eles não queriam saber o que nós fazíamos”. E o que faziam eles? “Silly things“. Uns disparates, sim. Michael Palin e Terry Jones juntavam-se e inventavam uns sketches. John Cleese e Graham Chapman também. Eric Idle tinha as suas ideias a solo. (“E, depois, havia um americano, já nem me lembro do nome dele”, brinca, sobre Terry Gilliam). Os cinco juntavam-se, depois, e contavam as “silly things” uns aos outros. “Algumas eram obviamente tão boas que ficavam logo escolhidas, sem discussão; podíamos ter reações histéricas!”. O critério? “O nosso riso”.
Ricardo provoca Palin. Afinal, as longas metragens dos Monty Python são sobre grandes e seríissimos temas: a religião, a História de Inglaterra, a vida… “Foi algo muito pensado?”. O britânico discorda, à partida, sobre o pressuposto da questão, porque para ele todos os filmes e sketches dos Monty Python são sobre o mesmo tema: “O absurdo do comportamento humano”. Hoje, preocupa-o o poder do “politicamente correcto” e o modo como está a tomar o humor de assalto. “A comédia pode ser a melhor maneira de lidarmos com todas as coisas que nos preocupam”, acredita. Por exemplo, o frio de uma noite de dezembro?