Lisboa, Porto e São Paulo, são estes os vértices de Língua Franca. Também poderiam ser África, Portugal e Brasil, num triângulo que tem como base comum a língua portuguesa. Mas é a linguagem universal da música, em especial do rap e do hip-hop, essa sim, a verdadeira língua franca dos protagonistas desta história. Afinal, mesmo com tanto mar entre eles, é muito mais o que os une do que aquilo que os separa. “O convite partiu da editora Sony, que pretendia fazer uma parceria entre artistas rap de Portugal e do Brasil”, recorda a rapper portuguesa Capicua, que com o luso-são-tomense Valete compõem a parte euro-africana do projeto. No outro lado do Atlântico estão Rael e Emicida, dois dos mais aclamados MC’s brasileiros, ambos de São Paulo. “Já existiam algumas pontes entre nós, porque, de certa forma, já todos tínhamos trabalhado uns com os outros. E também temos uma forma de fazer música muito parecida, fazemos um rap mais consciente e não temos problemas em misturar o rap com outros estilos musicais…”, continua a MC portuense, realçando também “o enorme sentido de identificação entre os quatro, que permitiu que todo o trabalho de composição e de estúdio funcionasse muito bem”. O convite foi estendido a três produtores, os brasileiros Kassim e Nave e o português Fred Ferreira, que se encontraram no Brasil, numa espécie de laboratório sonoro onde fizeram os beats sobre os quais foram depois criadas as rimas.
Só depois desse trabalho inicial estar feito é que os quatro se encontram pessoalmente, em Lisboa, onde trabalharam juntos durante dez dias, na criação de outras tantas canções incluídas no álbum Língua Franca. “Não queríamos fazer um disco por correspondência, em que cada um está no seu canto, a trabalhar à distância. O objetivo era fazer um disco resultante do debate e da partilha de ideias e isso nota-se bastante bem no produto final”, explica Capicua, comparando a experiência a “uma espécie de Big Brother do rap, com todos ali fechados, durante dez dias, apenas para criar música em conjunto”.
Um momento também muito especial para Rael, por ter sido a primeira vez que veio a Portugal, onde se surpreendeu “com a fonética do rap” deste lado do atlântico. “Cheguei com gripe e nos primeiros dias passei um pouco mal. Gostei de estar pessoalmente com o Valete, cuja música já conhecia e de conhecer a Capicua, uma mulher muito talentosa”, recorda o músico brasileiro, que nos dias seguintes, já recuperado, aproveitou para conhecer melhor Lisboa: “Fui ao Bairro Alto, ouvi fado e até entrei num bar onde estava alguém a tocar uma música minha!”.
Um disco de novos falares
Um dos maiores elogios ao disco Língua Franca veio de Caetano Veloso que depois de o ouvir pela primeira vez fez questão de escrever um texto onde enaltece o português, essa “língua franca da Damaia, do Cachoeira, do Grajaú, do Porto, de São Tomé e Príncipe, de Cabo Verde, de Angola, de Moçambique, do Brasil e de Portugal”, realçando ainda o facto de Capicua ser branca, Valete negro e Emicida e Rael mestiços. Dois portugueses e dois brasileiros que “falam a mesma língua” embora nem sempre se entendam, como também lembrou o artista. “Nos últimos anos têm surgido nas periferias das grandes cidades, em particular no Brasil, muitas ramificações da língua portuguesa. A Capicua é uma rapper do Porto, eu sou dos subúrbios de Lisboa e o Rael e o Emicida são dos subúrbios de São Paulo, que é uma zona onde o português está a ser reinventado todos os dias. Este projeto é importante porque aproxima essas novas linguagens”, defende Valete.
O próprio nome, Língua Franca, resume na perfeição o espírito do projeto: um encontro de rappers e produtores dos dois lados do Atlântico, que se juntam para fazer um disco para sair ao mesmo tempo em Portugal e no Brasil sem qualquer tentativa de importar ou exportar a música de um lado para o outro, em qualquer das direções, muito pelo contrário, como valoriza Emicida, o único dos quatro que já conhecia todos os outros pessoalmente. “O Brasil é um continente disfarçado de país, com uma vocação natural para a miscigenação. O português já tem muitas cores internas mas a maioria dos brasileiros não conhece as outras tonalidades que existem na Europa e em África. Este projeto é um primeiro passo para tornar isso possível. É algo que tem de ser feito muitas mais vezes, não só na música, mas também na literatura, no cinema ou até na banda desenhada”, salienta o rapper paulista, agora de regresso a Portugal, para mostrar o disco pela primeira vez ao vivo, esta sexta-feira, 14, com os restantes companheiros no festival Super Bock Super Rock. “Estamos a trabalhar muito no show, porque vai ser a primeira apresentação e queremos que tudo corra bem”, diz, prestes a entrar para mais um ensaio. “Mas, antes, vou comer um bitoque, que é das coisas de que mais gosto em Portugal!”