Laraaji e Lonnie Holley são dois artistas afro-americanos, no mínimo, desconcertantes. O primeiro começou por ser comediante e, quando descobriu a música, ganhou asas para voar. Literalmente, porque fez depois o caminho da meditação, transcendeu-se, saiu do corpo e ligou-se à energia cósmica, sendo agora o seu propósito transmitir esse “tooning” que nos conduz ao som universal do cosmos. O segundo, foi o quarto de 27 filhos (sim, 27!) – “havia sempre três no seio da minha mãe”, conta – e, depois de ter sido “trocado por uma garrafa de whisky”, a necessidade de sobrevivência levou-o a deambular pelo lixo. E foi a morte de dois filhos da sua irmã, para quem fez as lápides, que uma qualquer intervenção divina o levou a fazer do lixo arte. E mesmo quando à sua arte juntou palavras e sons improvisados num teclado básico, ele nunca esqueceu que a sua ligação é à mãe-terra e que é aí que tudo nasce.
O Fórum do Futuro juntou-os precisamente no final do Dia de Todos os Santos, para que nos contassem o que os liga à vida interior da música. Se as perguntas da moderadora, a rapper Capicua, eram claras e tendentes a obter a ordem das coisas, as respostas nem sempre. Ou não fossem estes os artistas da improvisação, de agarrar as energias ou os materiais do momento e com eles construir alguma coisa….divina, q.b.
Dança celestial com anjos
Laraaji, nascido em 1943, em Filadélfia, lá foi contando como o riso continua a ser uma atitude importante e libertadora na sua arte (faz sobre eles, aliás, alguns workshops) e de como já experimentou “muita coisa” que o levou a “muitos estados de espírito alterados”. Até que, “um dia olhei no espelho e aquele tipo não era eu”, contou.
Ora, daí à musica cósmica foi um passo, a ponto de se ouvir como ouvinte. Explica: “Faço um esquisso de tonalidades que me põem em situação de contemplação. Toco sempre de olhos fechados para manter relação com o campo energético.” Entretanto, a meditação salvou-lhe a vida. “Fui para além da cor e ultrapassei a questão da identidade negra.” Entre a musica, a meditação e o riso, faz da vida e da sua arte uma “dança celestial com anjos” que alguns terão a hipótese de experimentar quando frequentam as suas sessões.
“Consideram-me um louco”
Lonnie Holley, nascido em 1950 no Alabama, considera-se um “bébé santo”, por ter sido arrancado a sua mãe por uma qualquer força divina e aos 4 anos de idade andar “de vendedor em vendedor para arranjar comida”. Mas, sem essas experiências que o ligaram á mãe-vida e à mãe-terra, não seria o que é hoje. Sabe bem que a maior parte das pessoas o considera um louco, um “verme”. “Podem chamar-me autodidata, mas não um outsider. Gostava de ser visto como um roqueiro americano.”
Mas é com paixão que fala do seu lixo: “Se conseguissem ver todos os meus cemitérios de lixo, tudo o que a humanidade rejeita e o que é retirado às entranhas do ser humano…”, diz, para logo a seguir explicar como se “pode pegar nisso e fazer alguma coisa”. Conclui: “Estamos a estragar aquilo que Deus nos deu”.
Na abertura, brindou a assistência com uma das suas performances musicais e, na despedida fez mais uma para agradecer, a cantar, ao público que o ouviu.
Levar a arte à arquitetura
Foi Deus, esse “grande arquiteto da criação”, que esteve presente, horas antes, na sessão de abertura do Fórum. Foi o arquiteto chileno David Basulto, curador do Pavilhão dos Países Nórdicos na Bienal de Veneza deste ano, que introduziu o Cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do conselho Pontifício para a Cultura do Vaticano, para a grande questão: quem é o Grande Arquiteto?
A resposta era óbvia: “A criação é a primeira grande arquitetura, o primeiro elemento. Mas sempre é necessário identificar um centro, onde, se constrói o templo”. É a forma como “Deus procura pôr ordem na confusão e na fluidez das trevas do mundo.”
Da mesma forma, “todos os arquitetos tentaram construir um templo”, que “o ser humano deve sentir como seu”. E é esta ligação que deve estar presente, “a dimensão antropológica”, algo que reflita o corpo, as vivências e necessidades das pessoas. E não será por acaso, aponta Ravasi, que é difícil afastar as pessoas das suas barracas na periferia, pois são construídas à sua dimensão e imagem.
Por ultimo, Ravasi apelou para que a arquitetura volte a dialogar com a arte e a constatação deste desligamento foi a crítica que deixou à arquitetura moderna. “Vejam como a capela sistina, no Vaticano, é uma das mais feias e insignificantes do mundo. Mas como, por dentro, está revestida de arte. E, no entanto, há igrejas tão bonitas que não têm alma.”