Couve, bacalhau, chouriço – e mais o que possa caber numa mesa portuguesa, esteja ela aqui ou no outro lado do Atlântico. Paul Moniz de Sá desfia o que parece um rol de compras e ri-se do lugar-comum de falar de comida a propósito de raízes e saudades. O caldo-verde é um belo truque para pôr o filho a comer legumes: “Adora e nem sonha que leva couve”, conta, as gargalhadas a chegarem desfasadas pelo Skype. “Couve” é das poucas palavras que o ator há de dizer em português quando o entrevistamos a pretexto do mais recente filme de Steven Spielberg, O Bom Gigante Amigo, baseado numa história de Roald Dahl. À exceção da mãe, que lhe passou o sotaque de São Miguel, fala em inglês com a restante família (os irmãos moram todos a meia hora uns dos outros, nos arredores de Vancouver). É assim desde que emigraram para o Canadá, tinha ele dois anos, o pai a largar o bar que explorava na Ribeira Grande e a família a embarcar na limpeza de escritórios.
E, no entanto, Paul não hesita quando alguém lhe pergunta de onde é. Tem dupla nacionalidade mas garante que se sente português, sempre sentiu. “Cresci a dizer isso, tenho essa teimosia e acho que é bom para mim, embora nunca me considerasse diferente dos meus amigos. Só mais tarde é que percebi ‘Espera lá, vocês não comem bacalhau nem têm sala de jantar…’”
Tudo isto é dito entre gargalhadas. São 8 da manhã em Vancouver. Dali a pouco, Susanne, com quem está casado há 12 anos, regressa de ter ido levar o filho à escola. É por eles que, aos 41 anos, Paul quer continuar a fazer carreira no teatro e na televisão (estreou-se no pequeno ecrã na série Ficheiros Secretos, em 1998). É ator, encenador e professor de representação e nesta altura da sua vida não lhe apetece afastar-se muito de casa por causa de filmagens.
O Bom Gigante Amigo, o seu primeiro filme, até nisso correu bem. Foi rodado nas imediações de Vancouver, um acaso tão grande como ter entrado na audição para o papel de um dos comedores de “cereais humanos”. “O agente de casting achou que eu não tinha nada a perder; eu achei só que ia divertir-me.” Leu à pressa o livro de Dahl e, na véspera, observou o filho a dormir; para compor a personagem iria inspirar-se nos seus movimentos involuntários durante o sono, espécie de tiques nervosos.
Se o “amigo gigante”, interpretado por Mark Rylance, é enorme ao lado da minúscula Sophie (Ruby Barnhill), o seu Pinga-Carne (Meatdripper, no original) mete medo ao susto e ainda mais quando se junta aos outros brutamontes desenhados por computador. As expressões faciais, gestos e sons feitos pelos atores foram captados para depois serem utilizados para humanizar “bonecos” digitais. Um processo “fascinante”, diz Paul, porque os obrigava a serem filmados em permanência, enfiados em fatos especiais e em constante close up. “Estávamos sempre a interpretar, era libertador.” Durante os dois meses de rodagem, o português viu como Steven Spielberg deixa o coração no plateau. “Ele ama a arte e também o processo”, conta. “Sabia sempre o que estava a fazer e nunca se zangava, não gritava com ninguém, nem sequer levantava a voz.”
As aulas de teatro que dá no instituto Arts Umbrella, o mesmo onde estudou e se estreou a interpretar Frankestein, preenchem-lhe os dias, a cabeça e o ego. Trabalhar com jovens pode ser muito aliciante, sobretudo quando se assiste às suas descobertas, garante. Ele próprio hesitou em seguir uma carreira artística e acabaria por ser empurrado pelos irmãos, que lhe pagaram os estudos. Lá em casa, todos sabiam que o pai vivera frustrado por ter sido proibido de ser ator; a justiça seria, assim, reposta na geração seguinte. E talvez seja esse grande sentido de família aquilo que melhor o identifica como português. Isso e gostar de cozinhar com ingredientes esquisitos para canadianos que não privem com a comunidade lusa. Não resiste à couve, sempre a couve, e a improvisar pratos usando os restos que encontra no frigorífico, como sempre viu a mãe fazer.