Embora frágil, resgata toda a imponência conquistada, ao colocar a voz sempre que lhe vem à mente um poema. Cita de cor. Em português, alemão, francês ou italiano. E fala sem rodeios de tudo o que o abala. A ele, ao País e à Europa
A letra sai trémula e a voz sumida, mas o raciocínio continua cristalino.
Entre a gestão cultural, à frente do Centro Cultural de Belém, a política e a escrita, recusa escolher uma predileção. Mas a nada da Europa à situação política do País ou à morte Vasco Graça Moura, 72 anos, responde sem recurso a poemas ou referências literárias. Homem da palavra, viu-se confrontado, nos últimos anos, com uma das mais difíceis: cancro. Não lhe tem sido leve, mas convive com ela na medida possível da ironia, tão cara a um poeta. Como no dia em que se fotografou com Eduardo Lourenço em traje de doença, no Hospital da Luz, onde estiveram internados no mesmo piso, um dia antes da homenagem que lhe foi feita e comissariada por Eduardo Lourenço na Gulbenkian. “Essa fica para a autobiografia”, decide, divertido, depois de três horas de entrevista, apenas interrompidas pela necessidade de procurar um livro na estante ou um poema nas finas folhas de papel bíblia em que consulta os Lusíadas. Do trabalho diz que é “como calha, sem disciplina nenhuma” e que até um maço de cigarrilhas serve para anotar versos, caso o génio se revele na estrada entre Lisboa e Almeirim, onde mantém uma biblioteca com 30 mil volumes.
Diz que aos poetas nada falta. A Portugal, país de poetas, estará a faltar um pouco de poesia?
A Portugal está a faltar muita poesia. Não enche a barriga, mas pode ajudar a encher o espírito. Tudo o que imponha uma dialética de opostos é importante. Pelo menos um embrião de conflito. A unanimidade é a mais banal e empobrecedora das situações.
Os consensos não são o nosso forte?
Há um tipo que vem de Valladolid, em 1605, Tomé Pinheiro da Veiga, e escreve sobre os portugueses: “O Portugalete apareceu-me (…) com uma cara de vilãozinho, encarquilhada, mui trefo, tudo penedos escabrosos e montes, sem nenhuma lhaneza, muita silveira e a terra partida aos palmos com suas paredinhas, como quem diz ‘Isto é meu, não é teu, não me furtes as minhas uvas’.” Não querer partilhar, não querer encontrar soluções de conjunto, em embrião, já está aqui.
O sentimento de inveja é real ou é uma ideia feita de que não nos conseguimos desligar?
No fim, vem cá um embaixador e dizemos: “Calcule que o poema nacional termina na palavra inveja.” O que Camões faz é dirigir-se a D. Sebastião, dizendo que cantará as façanhas dele. O Alexandre tinha inveja de Aquiles, porque Aquiles tinha tido Homero para lhe cantar os feitos. Camões quis dizer a D. Sebastião: não tens nada que ter inveja dessa sorte de Aquiles porque tens-me a mim para cantar as tuas façanhas. É de uma arrogância literária extraordinária: eu valho mais do que o Ulisses.
Significa que temos olhado para esse verso da maneira errada?
Sem saber lê-lo, claro. O que está aqui é o contrário dessa ideia de inveja. É sobranceria.
Sentiu-a, ao longo da vida?
Não. Nunca me caraterizei por sentimentos extremos desse tipo. Acho eu. Fiz sempre por não sentir, mesmo quando me parecia que podia sentir qualquer coisa [risos]. A inveja é um sentimento humano e universal. Pode até ter aspetos positivos.
Mas é, sem dúvida, uma caraterística que, entre nós, assume um cariz mais ressabiado, negativo.
O período que o País atravessa é especialmente crítico. Como analisa a situação?
O País progrediu consideravelmente, nos últimos dois anos, em relação à fossa em que estava mergulhado. Mostra que tivemos, pelo menos, duas figuras na governação com papel decisivo. Uma foi Vítor Gaspar. Criou condições para isto melhorar.
E outra, em que, reconheço, a princípio não tinha grande esperança, é o próprio primeiro-ministro, Passos Coelho. Tem demonstrado determinação inabalável em atingir um fim. Esse fim é tirar Portugal do buraco.
Uma determinação que não afrouxa parece-me muito meritória.
Como tem sido a experiência de gestor cultural, à frente do CCB?
Muito interessante. Há menos dinheiro, mas temos engenho. Procuramos apoios nas embaixadas e nas grandes empresas.
Recorremos a intérpretes nacionais, lançámos jovens músicos e criámos uma secção de humanidades, com ciclos grátis, abertos ao público. Queremos fazer um ciclo sobre a mitologia de Camões. Será um ano virado, emblematicamente, mas não exacerbadamente, para a identidade nacional.
Porquê um ciclo sobre a identidade nacional? É preciso repensá-la?
Aconteceu. Não vamos dizer que somos os melhores do mundo e que ganhámos Aljubarrota. Vamos dizer: somos assim.
Raramente assumimos, simplesmente, que “somos assim”. O somos vem sempre com alguma crítica.
É bom vermos como somos e porque somos assim.
A polémica sobre os quadros de Miró diz alguma coisa sobre Portugal?
São a coisa mais estapafúrdia que aconteceu na política portuguesa, nos últimos meses.
Miró nunca foi um grande pintor e estes quadros são de segunda ou terceira categoria.
São refugos de uma coleção. Os mostrados deviam ser os melhores e nenhum deles era bom. Disso pode ter a certeza.
Defende que os Mirós sejam vendidos?
São um ativo do banco e enquanto cá estiverem estão a prejudicar os credores.
Como caraterizaria os portugueses, em termos culturais?
A nossa relação com a cultura é estranha.
Por um lado e por outro. Começa por ser uma relação aristocrática. As cantigas de amigo e de escárnio e maldizer ocorriam nos círculos cortesãos, mas a raiz do lirismo português é popular. Numa intervenção que fiz sobre o vestuário da mulher portuguesa comecei por falar num dos primeiros textos que existem em português, que é a Cantiga da Garvaia, de Paio Soares de Taveirós. Pensa-se que é dedicada à amante de D. Sancho I. No poema ela queixa-se de o poeta a ter visto em saia sem manto. A garvaia é isso. “Credes que vos retraia quando vos vi em saia.” No século XIII, era como vê-la nua. Terminei com um magnífico poema de David Mourão-Ferreira: “Sinto-me tonto entontecido quando de noite as minhas mãos são o teu único vestido.” Vamos da censura por falta de manto ao júbilo pelo contacto com a nudez. Há coisas em que a tradição popular chega ao conhecimento das classes cultivadas. Hoje, a presença constante de uma televisão e da internet contribui para acelerar uma mudança cultural.
Em que direção?
Não sabemos muito bem… A Europa problematizou praticamente todas as questões ligadas à condição humana. Na Europa, há valores religiosos, políticos e filosóficos que importa preservar. Não digo que todos devam ser cristãos. Eu, pessoalmente, não sou crente, mas os princípios da religião são fundamentais.
Diz-se que já tudo foi escrito.
Sobre o que é fundamental da condição humana, sim. Mas há sempre maneira de pegar nas coisas de forma diferente. O Ulisses dizia que o mar era cor de vinho. A nós não nos ocorreria, nem mesmo falando de Rosé [risos], dar essa cor ao mar.
Um poeta, ensaísta, tradutor sente, atualmente, desprezo pelas ciências humanas?
O descaso total pelas humanidades é um problema contra o qual me tenho batido no CCB. É importante que as universidades repensem o divórcio entre as humanidades e as ciências. É a dignidade e a espiritualidade que fez do europeu aquilo que ele é e tanto radica na figura do Apolo e suas musas como na de Kepler. Sem essa junção, a Europa não era o que é.
Falando da Europa, como vê esta brecha agora aberta na Ucrânia?
A Europa está interessada na pacificação da Ucrânia, mas não me parece estar interessada na integração.
Uma postura interesseira?
Uma postura oportunista de defesa da fronteira oriental. A Europa, uma instituição com 500 milhões de cidadãos, que é a criadora dos Direitos Fundamentais, não se pode sentir confortável com uma guerra quase civil.
A Ucrânia leva-nos a perguntar se a Guerra Fria terá mesmo terminado…
Tanto se proclamou o fim da Guerra Fria, como se proclamou o Fim da História. Não me parece ter havido nem um fim nem outro.
Nalguns aspetos, houve um desenvolvimento positivo das relações entre a Rússia e a União Europeia, mas sempre a pensar nos mísseis do Iraque, nos dispositivos de defesa e na emergência de novos perigos, nomeadamente na China e na Coreia, levando a NATO a deslocar as suas atuações estratégicas mais para essa zona do que para a Europa. Isso tem consequências graves para nós veja-se os Açores mas, sobretudo, para a vida europeia. A Europa estava habituada ao guarda-chuva protetor dos americanos e a uma poupança de despesas de Defesa, canalizadas para outras áreas, como a social. Essa estratégia terá de ser revista.
O eixo transatlântico perdeu força?
Sim, acaba por perder, força com o fim da Guerra Fria, porque, do outro lado do Atlântico, viram-se para o Pacífico.
O seu tempo de vida permitiu-lhe testemunhar esse auge europeu e agora esta decadência.
Dividiria o meu eixo de vida em duas partes… se me durar esperemos que haja ainda uma terceira. O meu primeiro tempo de vida não tem consciência de ser europeu, mas era concentrado em leituras europeias. Fosse a Ilíada, Crime e Castigo ou Romeu e Julieta.
Não se lia inglês. O francês teve hegemonia, nessa primeira parte da minha educação.
Não achava bem enquanto hegemonia, mas é uma perda cultural enorme termos milhões de toneladas de material impresso em francês que jaz desaproveitado.
A segunda fase…
Mais tardia, prende-se já com a revolução portuguesa. Com muito esforço, conseguiuse entrar para o Conselho da Europa, que era como que o vestíbulo da Comunidade Europeia. Vivíamos numa plena ignorância política no âmbito institucional e essa entrada no Conselho não nos deu a perceção da diferença entre um organismo de cooperação e um de integração. A cooperação vem com a entrada na União Europeia, uma vez que tem por fim redistribuir a riqueza de forma mais justa. É simples até à Europa dos 15 e extremamente difícil depois.
São demasiadas as diferenças entre países membros?
Sim. Na Europa dos 15, as coisas eram mais fáceis de resolver. Aconteceu comigo, enquanto eurodeputado. Uma vez, o Jorge Moreira da Silva [eurodeputado do PSD entre 1999 e 2003] tinha combinado uma coisa com os alemães e eles não queriam cumprir.
Resolveu-se num plenário do nosso grupo parlamentar, com uma pequena tirada no meu pobre alemão, que os impressionou.
Não estavam à espera que um deputado português lhes recordasse em alemão a palavra que tinham dado.
Traduz de várias línguas, incluindo o alemão. De onde vem esse domínio?
A minha aprendizagem das línguas é meramente formal. Desde os 11 anos que me habituei a ler em francês. Tive o alemão na escola e juntei-lhe algumas extravagâncias, como ler uma tradução do Mar Morto, do Jorge Amado, em alemão para apanhar melhor as coisas. Uma amiga disse-me que a tradução era péssima e eu respondi-lhe: foi por isso que a percebi tão bem [risos]. Cheguei a estudar russo por um manual árabe, impresso em gótico. Era uma trapalhada.
Mas tive um 16 no exercício de russo. Pratiquei o alemão com livros e depois fui desajudado pelo Parlamento Europeu e aquela salada de línguas. Há o episódio da filha do Jaime Cortesão. Um dia, numa receção em Roma, há um sujeito que se aproxima dela e diz: “Je veux te dire une chose dans mon meilleur français: You look very beautiful ce soir!” [risos]. Nesse tempo era mais fácil a convivialidade e a relação política. Mas também havia votações delirantes.
Por exemplo?
Coisas bizarras como uma resolução sobre a proibição da caça aos passarinhos, em Malta, na primavera, e outra sobre o funcionamento do pisca-pisca dos tratores.
Isso é uma Europa muito esquecida do seu lugar.
Essa não é uma Europa que saiba analisar politicamente os problemas. Mais de 700 cabeças não se entendem. Até à Europa dos 15 havia sempre a possibilidade de se chegar a um entendimento entre Parlamento e Comissão.
A convenção, a que se segue o projeto de Constituição, é o primeiro passo para a quebra da Europa se não houver cuidado.
Foi um erro?
O resultado foi mais do que um erro, foi um facto, a forma fraudulenta como os seus princípios foram introduzidos numa Constituição Europeia que ninguém sabe bem o que é. Reparte-se por inúmeros diplomas impossíveis de coordenar em termos satisfatórios.
Antigamente, a Comissão era a guardiã dos tratados. Quando o Parlamento se torna um órgão legislativo e passa a trabalhar de mãos dadas com o Conselho, a Comissão e o Parlamento vão perdendo poder. Não formalmente, mas apagam-se, esvaziam-se da capacidade de intervenção no devir europeu. Isso acrescentado ao aumento brutal do número de deputados…
Como se tivesse crescido até à sua ineficácia?
Sim. E houve um problema de que a Europa se livrou a tempo, que é o da Turquia. Estava tudo pronto para a entrada. Numa altura, pensei que fosse a solução para termos ali um tampão contra o terrorismo. Mas com os fundamentalismos e a crise no Mediterrâneo, a integração da Turquia está a ser posta em causa, o que foi uma sorte para a Europa, evitar integrar habitantes extremamente pobres e de uma civilização completamente diferente da nossa. Não se pensou que a liberdade de comércio pudesse precisar de alguns travões, como não se pensou em políticas que preservassem os valores europeus. O resultado disso é que o Abu Dabi pode construir as mesquitas que quiser num país europeu e a Europa não pode fazer lá uma igreja.
Não é isso que distingue os europeus?
Sim, tem sido. Mas é um risco. Até pela pressão sobre uma Europa demograficamente empobrecida. As novas gerações já nascidas no país de acolhimento, mas ainda tocadas pelas origens podem vir, um dia, a impor os seus códigos. É um risco de descaraterização que corremos. Não se esqueça da história de Califa Omar e da biblioteca de Alexandria: ou os livros da biblioteca dizem o mesmo que o Corão, e são desnecessários, ou contradizem-no, e são blasfemos. Nos dois casos, devem ser queimados. É, em termos caricaturais, o que poderia acontecer: sermos completamente islamizados. Por as gerações futuras já não terem memória do passado e a história à maneira islâmica encarregar-se de apagar o resto.
De todas as facetas, da política, passando pela poesia ou pela tradução e a gestão cultural, em qual se sente melhor?
Sempre me encheu as medidas pensar que a cultura não é um conjunto de linhas paralelas, mas de linhas que se entrelaçam e se contaminam. A intertextualidade não é mais do que isso. Foi o que sempre pratiquei, enquanto escritor. Quando trabalho, o que me dá prazer é o que estou a fazer. O resto esqueci-me. Se acho que uma coisa falhou quero é repeti-la para ver se a faço sem falhar.
Em que é que falhou?
Normalmente, esqueço muito as falhas.
Senão ficava bloqueado.
Esteve internado e interrompeu o trabalho. Custa-lhe estar afastado?
Tenho gerido o melhor que posso, obedecendo à risca àquilo que os médicos me mandam fazer. Mas continuando sempre a trabalhar em assuntos do CCB.
Apesar dos internamentos, continua a trabalhar. Que planos tem para o futuro?
Acabar o que estou a fazer no CCB, para ficar a funcionar em moldes saudáveis.
A doença e o sofrimento têm sido pretexto de criação ou de bloqueio?
O homem sorri à morte com meia cara, de José Rodrigues Miguéis ou De profundis, de Cardoso Pires, são exemplo dessa inspiração.
E há mais. Mas não é o meu caso. Não me tem estimulado a mostrar a minha genialidade [risos]. Genialidade entre aspas.
Não, porque procuro manter essas ideias afastadas da minha cabeça.
A ideia de finitude ou a ideia de doença?
A ideia de… a ideia de que algo que não me agradasse tanto pudesse acontecer. Mas faz-me muita impressão ver noutras caras o destino que lhes está marcado.
Custa-lhe espelhar-se noutros doentes?
Não é tanto isso. É um sentimento de solidariedade.
Não gostava que me acontecesse a mim, mas também não gosto que esteja a acontecer a outra pessoa, mesmo sendo desconhecida.
Já o amor, sempre foi uma fonte de inspiração importante.
Fonte de inspiração e tema de poemas importantes, como Diana no banho.
É um homem das palavras. Evita a palavra “cancro”?
Não, de todo. Até já comecei entrevistas a responder o que se passava com os meus dois cancros. Não me faz impressão nenhuma.
É mais uma palavra. Agora, usa-se mais oncologia. É uma subtileza, mas, há vinte anos, tinha-se uma “coisa má”. Perdeu a carga negativa.
Fala-se mais para exorcizar?
Não sei, não faço psicanálise. Tinha um cancro, apareceu um segundo, o que é que lhe havia de fazer? Tratei-me. Afinal, foi uma infeção hospitalar que esteve para me mandar desta para melhor. Uma trombose leva-me ao hospital, o médico diz-me que dali a três dias tenho alta, ao quarto dia chamam a família porque me estou a passar para o outro lado. Isso obrigou-me a ficar mais três semanas internado. Saí por causa da homenagem na Fundação Gulbenkian e, dois dias depois, não dava acordo de mim e tiveram de chamar os bombeiros para me levar para o hospital outra vez. Mais três semanas internado.
Passou mais de 40 dias internado e tem uma doença que pode ser mortal. Ocorreu-lhe a palavra eutanásia?
Nunca consegui chegar ao ponto ético de saltar de um ponto para o outro. Embora ache que, em muitos casos concretos, se justifique.
A experiência de hospital é traduzível por palavras?
Fiquei no Hospital da Luz e toda a gente era espetacular. Simpática e generosa.
Referia-me às emoções despertadas pela dependência, as máquinas e as agulhas.
Não me faz impressão nenhuma. Tenho de dar uma injeção na barriga a mim mesmo, todos os dias… A outra doente do meu quarto era uma líbia que tinha vindo cá parar ao abrigo de algum acordo. Não falava língua nenhuma a não ser líbio, o telefone dela dava as horas de Meca e ela guinchava.
Era um bocado desagradável. Quando o telefone tocava para as orações, acalmava e o único contacto com o mundo era batendo numa parede. João Cabral de Melo Neto tem um poema sobre uma bailarina: “está taconeando como se quisesse ouvir a mensagem transmitida”. É esta a tradução real do que se passava no quarto ao lado.