Imagine-se um festival onde as mais variadas sensibilidades convivem de forma pacífica. Onde a música é um complemento para se viver um espaço idílico. Onde a ecologia e o respeito pelo ambiente são uma realidade e não uma abstração. Onde a arte se mistura com a natureza numa osmose perfeita.
Onde se pratica ioga, mas também se dança até ao raiar do sol… Utopia? Não, é uma realidade na Herdade da Granja, em Idanha-a-Nova, onde, a cada dois anos, durante a lua cheia, se realiza o Boom Festival. Surgido em meados dos anos 90, na cultura rave de então, é hoje um dos mais conceituados eventos de cultura independente do mundo e o maior festival português sem patrocínios: vive só da receita de bilheteira.
O festival estende-se por cerca de 150 hectares, junto à barragem Marechal Carmona, e a primeira sensação, mal se entra, é de espaço. Junto ao Dance Temple [templo da dança], o palco principal, hordas de festivaleiros, das mais variadas tribos, dançam sem parar, ao som das fortes batidas do trance, mas o forte sol de agosto apela para zonas mais calmas, como a vizinha Sacred Fire [fogo sagrado].
Trata-se de um espaço mais contemplativo, situada num bosque de sobreiros, iluminado por candeeiros de papel maché e taipa (em forma de cogumelos, morangos ou ananases), tudo alimentado a energia solar, com um pequeno palco, por onde passam bandas de jazz, afro-beat ou world music. Mais além, situa-se a Healing Area [área da cura], onde diariamente são realizados workshops de medicinas e terapias alternativas ou sessões de meditação, ioga ou tai chi.
Festival multidisciplinar
O violento som do trance é entretanto substituído pelo melódico e relaxante Gamelatron uma instalação do artista multimédia norte-americano Aaron Taylor Kuffner, que, antes de chegar ao Boom, passou pela feira Art Basel, na Suíça, ou pelo MOMA, em Nova Iorque.
Trata-se da única orquestra robótica de Gamaleão (estilo musical indonésio) controlada por computador. A multidisciplinaridade, interculturalidade e transgeracionalidade do festival é materializada nos mais de 800 artistas presentes, das mais variadas disciplinas: música, escultura, pintura, land art, vídeo arte ou instalações interativas. Durante uma semana, há sempre algo novo para ver ou descobrir. Ou para ouvir: performances, workshops, conferências ou painéis de discussão sobre assuntos tão diversos como economia ou ambiente. Entre os artistas presentes destacam-se nomes como The Do Lab, companhia sediada em Los Angeles e especializada em ambientes interativos criados a partir de materiais orgânicos; Andrew Jones, artista digital americano que já trabalhou para a Light and Magic e a Nintendo, responsável pela criação da comunidade artística online ConceptArt; ou Daniel Popper, artista conceptual sul-africano especializado em fantoches gigantes conduzidos por pessoas -que a VISÃO conheceria pessoalmente, horas mais tarde, no palco Alchemy Circle [círculo da alquímia], a conduzir um dos seus gigantones ao ritmo do DJ israelita Rocky.
“Se a arte é uma forma de influenciar as pessoas, porque não fazê-lo nas questões que são realmente importantes no nosso tempo, como a ecologia e o respeito pelo meio ambiente?” As palavras são de André Soares, responsável pela área de sustentabilidade do festival. “Começámos a dar o exemplo em 2006, e temos visto grandes mudanças no comportamento do público”, refere. De facto, é de sublinhar não só a limpeza do recinto, como o facto de o público nela participar: se, por distração ou simples atavismo, se deita um copo de plástico ao chão, logo alguém surge para o deitar no lixo. “Somos um festival direcionado para o conforto, a alegria e o bem estar das pessoas. A nossa preocupação é o público, não vender um artista ou uma marca. Este é um espaço onde se pode estar uma semana, com muito estímulo artístico, a conhecer pessoas de todo o mundo. Há aqui gente de 102 nacionalidades”, acrescenta Soares.
Um conceito que valeu reconhecimento internacional ao Boom, com a atribuição de diversos prémios na área da sustentabilidade e um convite da ONU para fazer parte de um projeto que visa promover a consciência ambiental junto do grande público. Este ano, a organização do Boom estará também presente no festival dinamarquês Roskilde, um dos maiores eventos de música do mundo, para o qual foi convidada a desenvolver um programa ambiental.
Entre as novidades contam-se os 25 por cento do recinto movidos a energias renováveis, o reaproveitamento do óleo vegetal usado nos geradores, o tratamento das águas residuais ou as casas de banhos compostáveis inodoras mesmo após uma semana de festival. “É muito mais fácil ter apenas o discurso. Nós fazemo-lo porque queremos dar o exemplo”, salienta André Soares.
A bioconstrução está também presente nos palcos que recebem as atuações musicais, imponentes estruturas que se destacam pelo design arrojado e pela conjugação das artes digitais com materiais naturais. É aqui que a maior parte da ação acontece, com multidões a dançarem 24 sobre 24 horas. Já passa das três da manhã e, enquanto dormitamos umas horas na Liminal Village [aldeia liminal], a tenda das conferências onde, durante a noite, passam documentários sobre ecologia, política ou artes, lá fora, junto ao Alchemy Circle ou ao Dance Temple, a festa continua. Alguns nem sequer dormiram, outros acabaram de acordar. Um sumo de melancia fresco e uma empada vegetariana dão-nos a energia necessária para entrar no espírito. O sol já sobe no horizonte, mas sobre o recinto ainda reina a lua cheia…
Entrevista – Gerard Minakawa
O designer nova-iorquino, 38 anos, foi o responsável pelas principais estruturas do Boom. Especialista em construções de bambu e artista residente do festival Coachella, nos EUA, as suas obras já passaram pelo Museu de História Natural de Los Angeles ou pelo festival de artes Burning Man, realizado anualmente no deserto do Nevada.
O bambu não é o material mais esperado num festival de música. Como surge esta sua participação? Não o é no mundo ocidental e só acontece aqui porque a organização do Boom está muito aberta a novos métodos de construção. Esta parceria começou na edição de 2010 e manteve-se este ano de uma forma ainda mais bem preparada.
Que opinião tem sobre o festival Boom? Participo em cerca de 20 festivais por ano e raramente fico por lá depois de fazer o trabalho. Esta foi a primeira vez, em seis anos, que fiquei durante todo o festival. Estou a adorar, isto é como um festival deve ser.
Qual é a diferença do Boom em relação aos outros? Há uma espontaneidade e celebração que não são comuns. As pessoas estão simplesmente felizes de estar aqui. Um dos membros da minha equipa é palhaço profissional e fez um workshop no Boom. As pessoas gostaram tanto que foi obrigado a fazê-lo todos os dias e, ontem à noite, ele e os alunos fizeram uma performance espontânea na zona dos restaurantes. Em que outro festival isto seria possível?