Que dimensões estão envolvidas na repercussão internacional do trabalho da Joana Vasconcelos? É algo diferente da nossa visão, mais identitária e “etnográfica”? O que faz, por exemplo, um colecionador como François Pinault apostar na obra da artista portuguesa?
O que o mercado internacional, em geral, e os colecionadores, em particular reconhecem no trabalho da Joana e, antes de tudo, qualidade. As suas obras revelam: 1) conceito, ou seja, há uma ideia que se desenvolve; 2) forma, ou seja, a manifestação dessa ideia em termos visuais, e cuidada do ponto de vista do modo como a obra se dá a ver; 3) saber-fazer, ou seja, evidência de um processo de execução no qual impera mestria técnica, sejam obras mais simples ou mais complexas; 4) capacidade discursiva, ou seja, abordagem de temas prementes da sociedade atual; 5) vontade de escala pública, ou seja, extravasamento das paredes do museu, onde a arte se entrincheirou com o modernismo (que pressupõe a autonomia da arte face a vida), para buscar a esfera da polis, o espaço da coletividade, no qual a arte opera como sinal da historia e projeção do futuro.
Os estrangeiros não conhecem Portugal suficientemente para descodificarem as referências aos elementos identitários que a Joana utiliza nas suas obras. Porém, interessa-lhes essa ancoragem num dado contexto, essa leitura quasi-antropológica do modus vivendi local, porque num mundo global se valorizam as especificidades que contrariam a homogeneização cultural.
Quais as razões e contextos, nacionais e internacionais, para este sucesso meteórico em relativo curto espaço de tempo (uma década)?
O mercado internacional da arte fez-se de uma multiplicacão de bienais e feiras. Até recentemente, a consciencialização de um mundo global, a par de uma afirmação de geografias pós-coloniais, não existia, pelo que essa multiplicação de bienais e feiras assentou numa circulação dos mesmos nomes (comissários e artistas ocidentais ou, melhor, de países do G8, os que dominam o mundo), que rodavam de evento para evento. Na ultima década, o sistema da arte efetuou a crítica de si mesmo e começou a olhar para as periferias artísticas de modo mais ativo, adotando alguns dos seus artistas, sejam modernos, sejam contemporâneos. A afirmação de artistas portugueses à escala internacional (ou melhor, europeia, porque é da Europa que ainda se trata) ocorre neste contexto e a Joana é um dos poucos exemplos a citar.
Para além desta tendência geral, há uma tendência particular na qual o trabalho da Joana se inscreve: a revalorização do “craft”, ou seja, daquilo que convencionalmente se consideravam expressões artísticas (com os respetivos métodos) menores. O lado manual, laborioso, das obras da Joana encontra aqui um ponto de contacto, bem como a sua utilização de técnicas tradicionais, como o tricot e o croché, embora descontextualizadas do seu meio. Esta tendência particular é uma das marcas da Documenta deste ano, que inaugurou no início de junho em Kassel.
Outra tendência particular na qual o trabalho da Joana encontra eco é a da combinação do sentido poético das obras com uma perspetiva política. As obras da Joana têm uma mensagem sem serem panfletárias e seduzem o olhar pela sua aparência, pela iconografia que citam e pelo seu poder de maravilhamento. Por outro lado, essa inscrição politica das suas obras faz-se na polis e não no museu; não se trata de trazer a política para o museu mas de atuar sobre a política em si. Por exemplo, quando a Joana recupera e utiliza faianças Bordallo Pinheiro, não está interessada apenas na tradição que esses objetos evocam ou nas referências culturais a que aludem, mas empenha-se na salvação da fábrica Bordallo Pinheiro como entidade fabril e local de memória.
Que responsabilidade atribui à própria Joana Vasconcelos (e ao seu modus operandi, nomeadamente o trabalho coletivo de atelier) neste sucesso?
O facto de a Joana ser uma incansável trabalhadora e uma pessoa focada ajudou à profissionalização do seu atelier. Ao contrário da maioria dos artistas portugueses da sua geração, a Joana apostou na constituição de uma equipa e em condições logísticas de excelência que proporcionassem uma impulsão da sua capacidade de produção. A Joana percebeu, há uns anos, que o mercado português, do qual se alimentam 90% dos artistas portugueses, não tinha capacidade de absorção de toda a produção dos artistas existentes (consagrados, meia-carreira, emergentes) e que só internacionalizando-se poderia continuar a trabalhar. Em vez de fazer como os outros portugueses (e não só os artistas…), ou seja, consumir, consumir e consumir, a Joana investiu e agora colhe os frutos desse investimento. Foi um risco, porque esta estratégia poderia não resultar, mas correr riscos faz parte da sua maneira de ser.
Apesar desta repercussão, a própria Joana referiu, em entrevista à VISÃO, que continua a ser a mal-amada em Portugal, e que o seu mercado é fundamentalmente internacional. Porquê tal acontece?
As obras da Joana atingiram preços demasiado elevados que os colecionadores portugueses não conseguem acompanhar, daí que seja no mercado internacional que elas circulem. É claro que há obras de pequena escala que ainda são adquiríveis em Portugal, mas, no caso das obras de grande escala, isso já dificilmente acontece.
A Joana não é mal-amada em Portugal, pelo contrário, a Joana é da(o)s pouca(o)s artistas com visibilidade no seu país. O que acontece é que, sempre que um artista alcança o terceiro estádio de reconhecimento, o do público (primeiros os pares; depois o sistema da arte, ou seja, os museus/diretores/comissários, críticos, galerias e colecionadores; e, finalmente, o público), seja em Portugal ou no mundo, seja hoje ou no passado, o sistema da arte dominante rejeita-o porque deixa de conseguir gerir a sua carreira e, assim, deixa de fixar o seu valor. Passa-se isso com a Joana: parte do sistema da arte português não a apoia, enquanto outra parte o faz. A parte que não a apoia é aquela que, como em toda a economia portuguesa, viveu sempre à sombra do Estado (dos departamentos culturais, MC ou SEC ou DGArtes e seus antecessores) e, por consequência, das representações oficiais em eventos internacionais, dos museus nacionais e das coleções de empresa ou particulares daqueles que negoceiam com o Estado (bancos, por exemplo). Essa parte do sistema da arte é a dominante desde o 25 de Abril de 1974, “controlando” o aparelho de Estado, as Fundações como a Gulbenkian, o ensino (Ar.Co e Belas-Artes de Lisboa), as revistas que aparecem e acabam, e alguma da crítica nos jornais. Como a Joana não viveu à sombra do Estado (nunca representou oficialmente Portugal em eventos internacionais, por exemplo) e como criou um modelo alternativo de produção e distribuição das suas obras (não tem galeria há uns anos, por exemplo, à semelhança do Pedro Cabrita Reis por exemplo), ela tornou-se independente desse sistema da arte dominante, que naturalmente a coloca de lado, porque são as suas raízes e a sua sobrevivência que estão em causa. Este sistema da arte dominante vive permanentemente em função da “imaginação do centro”, ou seja, reproduzindo as dinâmicas dos países ricos em busca de uma inserção no seu circuito, quase sempre sem postura critica (o que é estrangeiro é sempre bom, à la nouveau riche…), o que redunda sempre em cópia tardia do que se faz no estrangeiro e, portanto, em algo que o estrangeiro rejeita – porque prefere o original e não a cópia tardia, o que então impede a tal inserção nesse circuito. Quando um artista consegue inscrever-se nesse circuito, como a Joana Vasconcelos, é sempre porque não copiou tardiamente, porque não viveu em função da “imaginação do centro”, mas porque gerou uma alternativa, enraizada na periferia, que chama a atenção pela sua diferença.
Descrever a Joana Vasconcelos como um artista popular ou como artista-empresa, são rótulos adequados? Será excessivo dizer que é a única artista portuguesa, pensando em várias gerações, que é reconhecida pelo “público comum”?
O “público comum” é o público dos não especialistas, ou seja, na verdade é o “público”. Os especialistas não são público, são profissionais do setor. Da geração da Joana, sim; ela é a única artista plástica reconhecida pelo público. Parte desse público conhece as suas obras, outra parte só conhece a sua persona mediática, mas isso acontece com todos os artistas de todas as áreas (musica, cinema, etc). “Artista-empresa” é uma expressão que só em países pequenos, como Portugal, poderia surgir: onde a luta ideológica entre modo de produção artesanal e o modo de produção industrial ainda define os campos da cultura (por exemplo, o cinema). Qualquer artista com circulação de obras a nível internacional tem um atelier com uma equipa, e não é preciso citar os mais óbvios para exemplificar. Alguns até têm atelier em várias cidades/países, da China aos EUA. Aliás, desde sempre que a arte se faz assim. Por exemplo, a discussão sobre se uma pintura foi feita pelo Rembrandt ou por um seu aprendiz, baseia-se no facto de que o Rembrandt tinha um atelier no qual trabalhavam várias pessoas que produziam as suas obras. O artista sempre foi aquele que tem a ideia, não aquele que a executa. Quem não tem atelier com equipa usa empresas contratadas para o efeito, para produzir as suas obras, e até há artistas que têm assistentes para a investigação e não apenas para a produção das obras. As exceções a esta lógica são poucas…
Quais são os marcos/peças mais importantes do percurso de Joana Vasconcelos?
A série dos Corações Independentes constitui o ponto de viragem do percurso da Joana, pois é através delas que começa a vender as suas obras a colecionadores e museus internacionais. O momento exato é o leilão do Coração Independente Dourado, que tinha sido encomendado pelo restaurante Eleven, e foi depois adquirido por um colecionador estrangeiro. Essa venda chamou a atenção de galerias em Paris e Londres que, desde então, representam a Joana e têm uma carteira de clientes (colecionadores) aos quais a Joana não tinha acesso. Por outro lado, a obra portuguesa que mais deve ter circulado nos últimos anos deve ser o Coração Independente Vermelho, pertencente a Coleção Berardo.
Como descreveria a relação entre as peças e os compradores? E é, efetivamente, uma artista muito presente em coleções e acervos privados?
A relação entre os colecionadores e as obras da Joana é de paixão. Hoje, quando alguém adquire uma obra sua, dado o preço relativamente elevado, é porque a quer ter ou, no caso dos museus, a quer mostrar, e isso só acontece quando há paixão e não por qualquer outro motivo, inclusivamente financeiro. A razão pela qual as suas obras estão mais em coleções privadas, deve-se ao facto de os museus terem verbas baixas para aquisições, enquanto que os privados não têm restrições. Por outro lado, as obras de grande escala da Joana requerem armazenamento e montagens complexas, o que também afasta alguns museus que não têm condições e equipas adequadas. Este facto é comum a todos os artistas com obras que circulam no mercado internacional (e mesmo nacional), ou seja, é normal que um artista esteja, primeiro, mais presente em coleções privadas e, depois, tenha obras nos museus. Muitas vezes, são os colecionadores privados que cedem essas obras aos museus; aliás, esta é a principal modalidade de desenvolvimento de uma coleção museológica dos países centrais, não só hoje como sempre (vide os casos do MoMA ou da Tate).
Como vê as razões e as repercussões do convite para expor em Versalhes, depois de artistas como Koons ou Murakami? É possível vê-lo também numa lógica de abertura internacional do mercado da arte à “arte periférica”, às linguagens artísticas do resto mundo (depois dos chineses, os sul-americanos, os africanos…)?
Sendo a primeira mulher e a mais jovem artista a expor no Palácio de Versalhes, tal acontecimento é excecional a todos os títulos (em termos europeus, só a encomenda para a Turbine Hall da Tate Modern está a este nível em termos simbólicos). Mais importante do que ser mulher e a mais jovem, e o facto de ser a primeira artista oriunda de um país periférico, sem qualquer peso no sistema da arte internacional. As razões prendem-se, por um lado, com os antecedentes recentes ligados à sua presença em França (galerista francesa; comissária francesa associada à Coleção Pinault, responsável por este projeto francês). Por outro lado, e talvez mais importante, com os seguintes fatores: primeiro, a inscrição das suas obras numa linguagem pop que Koons e Murakami personificam; segundo, a capacidade das suas obras interagirem excelentemente com o ambiente do Palácio de Versalhes, cheio de história; terceiro, a capacidade das suas obras responderem a um contexto e de a Joana utilizar esse mesmo contexto para produzir novas obras.
E, sim, esta escolha da Joana para expor no Palácio de Versalhes entronca na tomada de consciência por parte das instituições dos países centrais (ricos, poderosos, o G8…) de que o mundo vai além do seu quintal e que nada justifica manter a visão eurocêntrica que reinou nos últimos séculos, pelo que importa acompanhar, compreender e valorizar o que se passa noutros contextos. Porém, sem paternalismos e sem derivas etnográficas; nunca o cliché se aplicará tão bem, mas as obras da Joana Vasconcelos falam uma língua simultaneamente local e global que as tornam exemplares do espírito do tempo que caracteriza o momento atual.