FINAL CUT -Quis contar a história de uma mulher que viveu duas vezes?
VICENTE ALVES DO Ó -Talvez ela tenha até morrido duas vezes… É antes de mais um filme pessoal, sinto-o assim. Escrevi sobre algo que vivi e me fez sofrer. Há sempre um processo de catarse. Eu só escrevo sobre aquilo que conheço, é a melhor forma de sermos verdadeiros na criação.
Mas escreveu muitos guiões por encomenda…
Sim, mas ponho sempre lá algo de mim, ainda que escondido. Tudo se recria, escondendo-se a verdade mas sem a matar. E criamos o enigma e o mistério. A arte tem a obrigação de criar mistério. Mas neste momento as pessoas parecem não querer ser surpreendidas.
Ao contrário do que se esperaria de um argumentista que se torna realizador, o seu filme está carregado de ideias visuais…
Mas isso é outro cliché. Eu sempre fui realizador, só que escrever era o que na altura [vivia em Sines e precisava de um emprego de subsistência] estava ao meu alcance. Mas o que sempre despoletou a minha escrita foram as imagens.
Que imagem despoletou a história desta mulher que parece ter tudo para ser feliz até que recebe um beijo de um suicida?
Numa noite muito emocional passava junto ao viaduto Duarte Pacheco e aí a ideia surgiu-me: como se pode sentir insatisfeito quando se tem tudo?
Mas ela não o salva nem se mata…
Se calhar ele conseguiu fazer uma coisa que ela nunca teve coragem para fazer. E passa o tempo atrás do passado deste homem como quem persegue a própria sombra. E ao falar-se da morte, fala-se da vida…
…e de uma certa ideia de beleza…
Pois, o cinema português trata a condição humana sempre com alguma degradação para lhe dar veracidade. Mas a realidade é muitas coisas. Eu podia ter posto a personagem Simone como caixa de supermercado, mas aí chamava-lhe Maria Alzira. Eu uso a beleza e a estética na vertente mais diabólica. Seduzo e deslumbro, sim, mas para falar de coisas terríveis.
O filme está cheio de citações cinéfilas, não só ao Vertigo, também aos Inadaptados, ao Eléctrico Chamado Desejo…
Sim, mas se quer que lhe diga fui buscar mais inspiração estética às belas revista de moda e de viagens, de arquitectura e decoração, à publicidade, à produção fotográfica. Hoje, são mais essas imagens que nos fazem sonhar. E muitas dessas revistas são mais caras que um bilhete de cinema. Ana Margarida de Carvalho