Quando o cinema é o assunto do próprio filme, ocorre-nos logo Fellini, mas também Godard, Moretti e até Miguel Gomes. Ou até o guru do guionismo made in Hollywood, Robert McKee, que no seu simplismo à americana fica de cabelos em pé com certo cinema europeu e pede: “por favor não façam mais filmes sobre o cinema”. Como se entende pelo título, Cinerama, a primeira longa-metragem de Inês Oliveira, é um filme que quer ser cinema antes de ser história, antes de ser narrativa, antes de ser discurso ou até mesmo linguagem. Como um livro chamado livro (que será o próximo de José Luís Peixoto), uma canção chamada canção ou um quadro chamado quadro. Há pretensão, mas também liberdade e risco. Um convite ao embarque numa realidade subjectiva, mas com um profundo sentido crítico, entre a ironia e o sarcasmo, entre a arte e o exercício. Há uma vontade experimentar em formato longo o que tipicamente só se aplica às curtas. Um filme diferente. Nitidamente se reconhecem três partes. A primeira eminentemente narrativa, numa história de ajuste de contas, entre um grupo de empregados e o seu director, com uma boa dose de sarcasmo e terrorismo legítimo. Lembra aquela canção do Fausto, no tempo do PREC, “Isto ainda vai acabar à porrada no patrão”. É que ali acaba mesmo. Inês Oliveira, apesar de só ter nascido em 1976, até cantarola a música. “A época em que se nasce é muito importante e eu cresci a ouvir essas músicas”, diz. E prossegue: “Pensei em criar essa ambiguidade, de dar a entender que tal se poderia passar no pós 25 de Abril e que eles poderiam ser das FP25”. Mas apesar do cenário funcionar, os telemóveis afastam essa possibilidade. Mas os problemas laborais são perfeitamente actuais, tal como Inês Oliveira faz questão de frisar. O aumento desemprego, o suicídio laboral, esta primeira parte do filme, sem dúvida, tem essa leitura de intervenção social. E de desespero, porque, por mais que o prendam, batam e questionem, o patrão nem sequer estrebucha, mal pestaneja e não sua. “Podes gritar, mas não serve de nada. Já houve alturas em que gritando se mudava o mundo. Agora nem gritos nem sussurros.” E de narrativa já estamos servidos. Ou quase. Já que as duas partes que se seguem, apesar de não serem totalmente desprovidas de história, sentido ou inteligibilidade, entram por caminhos bem mais abstractos e às vezes até surrealistas. Facilmente se reconhecem duas faces da sociedade contemporânea, que Inês Oliveira parodia. De um lado o material, do outro o espiritual. Ambos os mundos são fechados, julgando que o seu curto universo corresponde ao todo. O primeiro quadro, dedicado ao mundo dos escritórios, inclui coreografias de parkour, reuniões sobre nada em edifícios em ruínas, usando as expressões próprias do meio para o ridicularizar. É uma chamada de atenção para o absurdo social. Tal acontece no segundo quadro, com a farpa apontada ao mundo zen, à onda new age, que se fecha em Lisboa como se tivesse na Índia, nas montanhas dos Himalaias. Há uma religião fundada na paz, mas ao mesmo tempo uma alienação social altamente contraditória e crenças que não se desviam assim tanto das mais tradicionais. Assim ninguém está impune. “É caricatural. Faço um tratamento não realista”, explica. “Usufrui de uma liberdade que tive para filmar. Se a segunda parte exige um esforço de elasticidade, no terceiro acto há um crescente de abstracção, uma liberdade que até pode ser incomodativa.” Para o filme, Inês Oliveira contou com um elenco vasto e luxuoso, incluindo Diogo Dória, Pedro Hestnes e Francisco Nascimento. “Um dos motivos pelo qual o filme é muito heterogéneo é que não pude ter muitas sessões com os actores.” O ar que o filme tem lembra a ‘escola’ de O Som e a Fúria, de onde se destacaram os realizadores Miguel Gomes, Sandro Aguilar e João Nicolau. Há sobretudo uma colagem a um certo humor surrealista de Miguel Gomes, ainda que o tema, desta feita, ao contrário do que acontece em todos os filmes do autor, não é a adolescência. “Não sinto que haja grande ligação, até porque eles próprios são muito diferentes, embora tenha a curiosidade em saber o que eles acham do meu filme”, diz Inês Oliveira, confessando uma certa admiração. “Estou com muita curiosidade em saber da reacção deles. Não faço a menor ideia se eles vão criar uma identificação com o meu filme. Sei que o Miguel Gomes gostou muito do Nome e o Nim”. Se há escola que Inês tem é a das curtas-metragens. A sua primeira, O Nome e o Nim, ganhou logo o prémio nacional em Vila do Conde. Começou com uma montagem de som sobre imagens Seguiu-se um documentário, sobre Comer o Coração, de Vera Mantero e Rui Chafes. E agora já a longa. Tem alicerces no cinema. Começo naturalmente como espectadora, primeiro da RTP2, por influência do irmão, depois na Cinemateca. “Achava inconcebível o John Ford ser realizador, e eu também”. Até que um primo, Alexandre Oliveira, hoje produtor de cinema, a desafiou a entrar na Escola de Cinema. Fez o curso na variante de som, por não ser uma aluna aplicada. “Mas ainda bem, foi importante ter ido pelos som, e não pela montagem, porque é mais intuitivo e menos racional.” Pelo cinema quer ficar. Já tem um projecto para um próximo filme. Recebeu um apoio para a escrita do argumento. E agora vai já entrar no próximo concurso do ICA. Entrará pelas abstracção pura? “Quem me dera”, diz Inês Oliveira, “a maravilha que deve ser”.
Podes gritar, mas não te serve de nada
Cinerama, de Inês Oliveira
FOTOGALERIA. Cinerama é um filme em três actos, orgulhosamente abstracto, em que a forma ganha protagonismo
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