Chega ser irónico que o filme mais discreto do ano, apesar das ovações nos festivais de Veneza e Toronto, (foi tal a discrição que as distruibuidoras repuseram-no agora em sala, a reboque das nomeações) seja o mais sério rival do filme mais exibicionista do ano. Para além da outra ironia doméstica, já muito explorada pelos jornais, de nos anos 80, de Bigelow ter sido casada com Cameron. A terceira ironia é que Avatar é, à sua maneira, um filme de guerra- intergaláctica, fantasista, irreal, passada entre seres azuis de cauda e orelhas ponteagudas, num planeta a não-sei-quantos anos luz daqui. O filme de Bigelow é um filme de guerra – só que real, passado entre seres vestidos de camuflado, nada coloridos, aliás, sempre tingidos de, aquela não-cor do deserto iraquiano. É um filme notável, com a estética da câmara à mão, nervosa e trepidante, ao estilo quase documental, com zooms rápidos e montagem energética, que começa a fazer escola nos filmes sobre o Iraque. Em contrapartida, a realizadora faz das mais inteligentes utilizações da câmara lenta nas explosões (um déjà vu cinematográfico), que aqui têm algo de realmente diferente e desintegrante. E aos momentos frenéticos sucedem-se as delongas, quase inertes com a areia a entrar nos olhos dos atiradores, que nem uma mosca podem sacudir, reféns de retesada imobilidade. Algo ali nos evoca Os Três Reis (1991), com o excesso de grão e as manipulações de ângulos e pontos de vista, mas numa versão menos delirante. Ou seja, com o delírio próprio do quotidiano de uma brigada que desmantela bombas. Com uma fluência notável, a realizadora vai fazendo.suceder as misssões dos três militares especialistas, aguentando a tensão em estado latente. E o espectador sente-se como uma vez Hitchcock explicou: com uma bomba debaixo da cadeira. Porque Em Estado de Guerra é como uma bomba ao retardador. Que faz suster a respiração, quando o protagonista (Jeremy Renner, nomeado para melhor actor) corta o fio (certo ou errado?) dos dispositivos, e caminha com o seu fato anti-minas, como um astronauta a pisar solo lunar, ou pelo menos tão inóspito e escalavrado quanto os chãos de Bagdade. Há gatos escanzelados que passam, lixo, muitos detritos, pó, restos e partículas, prédios arruinados como cáries dentárias e muitos mirones, olhares ocultos nas janelas, nas esquinas, no alto dos minaretes. Esta é uma guerra muito diferente da do Vietname, onde as cenas de batalha se passavam entre florestas de bambu. Aqui trata-se de guerra urbana, o que torna tudo muito mais angustiante. Cada buraco, cada molho de lixo é uma ameaça. O filme é baseado no primeiro guião do jornalista Mark Boal que fez reportagem junto a uma unidade do exército americano no Iraque (aliás, um seu artigo publicado na Playboy serviu de inspiração ao filme No Vale de Elah, de Paul Haggis, em 2007). Talvez por este contacto com a realidade, as personagens sejam mesmo em 3D. O protagonista é um figura excepcional, do género cow-boy mal-comportado, que não cumpre as regras de segurança, e põe os seus companheiros em perigo. Mas não se sente ofendido pelas insolências ou agressões dos seus subordinaods, que o detestam ou que o admiram…. O mais curioso neste filme é a subtileza com que é descarregada a mensagem anti-belicista. Ela está lá, mas parece que não. E no entanto, ela passa com a delicadeza de um gato coxo que atravessa os escombros ou com a minúcia dissimulada com que os dispositivos são armadilhados. A guerra é uma droga, diz-se no início. O desmantelador de armadilhas é um toxicodepente que necessita da sua dose de adrenalina diária. Vêmo-lo, já de regresso aos EUA, especado em frente à prateleira dos cereias de um hipermercado. Sabe escolher o fio certo para cortar, mas fica atónito perante a abundância absurda de marcas de cereais, não sabe em qual pegar. Será a própria América que sofre desta adição incurável, como um Hurt Locker (o título na versão original tem múltiplas conotações)? Como se pode construir um com tanto setress pós traumático à solta?
beje
O problema é que, apesar das cenas e sequências poderosas, o filme passou tão encoberto como as bombas de que fala. Na lista do Box Office americano ficou em 131º. O facto de ter ganho os prémios BAFTA e o Directors guild of América Award (em 61 destes casos 56 converteram-se no Óscar respectivo da categoria) pode dar-lhe alguma esperança. Há quem fale numa situação de compromisso, que seria a de dar a Avatar o Óscar de melhor Filme e a Bigelow o de melhor realização. Aí seria a primeira mulher a ganhar um Óscar de Melhor Realizadora.