O puzzle não começou a ser montado este ano, ainda para mais um ano atípico, em que, por causa da pandemia, Nicholas P. Dunning não pôde realizar trabalho de campo. Uma das peças, aliás, tem cerca de dez anos, reportando-se à altura em que este professor de Geografia da Universidade de Cincinnati (UC), nos Estados Unidos, encontrou quartzo e zeólito a dezenas de quilómetros de distância de Tikal, uma antiga cidade maia localizada no atual norte da Guatemala.
“Era um tufo vulcânico, exposto e envelhecido, de grãos de quartzo e zeólito, de onde saía água a um bom ritmo”, recorda o investigador, numa reportagem publicada pela própria UC. “Os trabalhadores encheram as suas garrafas de água. O local era famoso pela sua água limpa e doce.”
Nesse dia, Dunning aproveitou para recolher amostras. Uma carreira a estudar civilizações antigas tinham-no ensinado a não desperdiçar as oportunidades. Mas não podia adivinhar que, quase uma década mais tarde, colegas seus haveriam de determinar que aquele quartzo e aquele zeólito eram semelhantes aos minerais identificados num reservatório de água em Tikal, cidade conhecida como Yax Mutal pelos antigos maias, que floresceu entre os séculos V e IX, antes de ser abandonada.
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Tanto o quartzo como o zeólito são usados na filtragem de água moderna. “Os filtros teriam removido micróbios nocivos, compostos ricos em nitrogénio, metais pesados como o mercúrio e outras toxinas da água”, aventa Kenneth Barnett Tankersley, professor associado de Antropologia da UC e principal autor de um estudo realizado por uma equipa de antropólogos, geógrafos e biólogos, agora publicado na Scientific Reports.
“Foi provavelmente por meio de uma observação empírica muito inteligente que os antigos maias viram que esse material específico estava associado à água limpa e fizeram algum esforço para transportá-lo até à cidade”, diz Dunning. “Eles tinham tanques de decantação por onde a água fluía antes de entrar no reservatório Corriental. A água provavelmente parecia mais limpa e também teria um gosto melhor.”
O interessante é que esse sistema “ainda seria eficaz hoje e os maias descobriram-no há mais de dois mil anos”, sublinha o mesmo investigador. “E foi construído quase dois mil anos antes de sistemas semelhantes serem usados na Europa, o que faz dele um dos mais antigos sistemas de tratamento de água do género no mundo.”
Para os maias, encontrar maneiras de recolher e armazenar água limpa era de grande importância, escreva-se. “Tikal e outras cidades maias foram construídas sobre calcário poroso que dificultou o acesso à água potável na maior parte do ano durante as secas sazonais”, lê-se no estudo.
“Na América do Norte, as antigas culturas indígenas obtinham água limpa de nascentes naturalmente filtradas, usavam a fervura e a cerâmica de barro na qual contaminantes, lodo e argila eram puxados para os lados do recipiente. Na Mesoamérica, os astecas dependiam de abundante água de nascente artesiana trazida para as suas cidades através de aquedutos, que não exigiam técnicas de depuração. Também foram construídos aquedutos pelos incas, que levavam água de nascente das montanhas para cidades da região andina da América do Sul. Os maias precisavam da filtragem de água.”
Os antigos maias viviam num ambiente tropical e tinham de ser inovadores. É uma inovação notável
Kenneth Barnett Tankersley, professor associado de Antropologia da universidade de cincinnati, nos estados unidos
Este é o primeiro sistema de depuração de água observado no antigo Novo Mundo, sublinha Tankersley. “Os antigos maias viviam num ambiente tropical e tinham de ser inovadores. É uma inovação notável. Muitas pessoas veem os povos nativos no hemisfério ocidental como não tendo a mesma engenharia ou força tecnológica de locais como a Grécia, Roma, Índia ou China. Mas quando se trata de gestão da água, os maias estavam milénios à frente.”
Claro que reconstruir os hábitos de uma civilização que existiu há mil anos é complicado, acautelam os investigadores. “Não temos provas absolutas, mas temos fortes evidências circunstanciais. E a nossa explicação faz sentido”, nota Dunning. “Isso é o que se deve fazer como arqueólogo”, lembra David Lentz, professor de Ciências Biológicas da UC. “Temos de montar um puzzle com algumas das peças que faltam.”