A sensação de medo, finitude e claustrofobia que a pandemia nos trouxe está a ter um impacto direto na forma como as pessoas querem viver e, consequentemente, no tipo de habitação que passaram a idealizar para a sua família. A necessidade de ar, de espaço e de uma maior ligação à natureza criaram novas exigências e nunca como agora os imóveis rústicos e os terrenos para pequenas construções particulares foram tão disputados. Tal com aqueles para uso mais comercial estimulado pelo setor da logística, agora em alta devido à expansão do comércio online que obriga à necessidade de espaços de acondicionamento das encomendas.
Na plataforma Imovirtual, que agrega anúncios de várias consultoras imobiliárias do mercado, a procura por terrenos cresceu 69,3% no primeiro trimestre deste ano em comparação com o mesmo período de 2020. Ao longo do ano passado, foram mais de 6,5 milhões de visualizações para este tipo de produto imobiliário, uma novidade para uma classe de imóveis que até então atraia uma procura muito específica e bem mais residual.
Um movimento que vai além da simples vontade de sonhar através de pesquisas nos sites imobiliários, mas que se está a traduzir em transações efetivas por parte dos portugueses, como atesta o grupo Remax Portugal. Um levantamento feito para a Visão Imobiliário apurou que só entre janeiro e abril deste ano, a rede vendeu cerca de 1600 terrenos, mais do dobro do que foi vendido no período homólogo. Ou seja, cerca de 100 por semana, em termos médios. A mesma tendência de crescimento se verifica nas quintas e herdades: nos primeiros quatro meses deste ano, as agências da Remax em todo o país venderam 243 destes imóveis, um acréscimo de 66,4% em comparação com o período homólogo.
“Estamos a ter uma procura muito significativa de terrenos e não só em zonas mais rurais, mas nas periferias das principais localizações do país. É um movimento que já tinha começado antes da pandemia devido aos preços mais elevados nos centros das cidades, mas que ganhou um impulso enorme com os confinamentos e o recurso ao teletrabalho como norma em muitas empresas”, diz Beatriz Rubio, CEO da Remax Portugal, acrescentando que as pessoas “querem essencialmente terrenos de pequena ou média dimensão, com área suficiente para ter um jardim onde as crianças possam brincar e que, em simultâneo, não estejam longe da cidade”.
Um bom exemplo vem do concelho de Sintra, que tem registado um interesse crescente nos tempos mais recentes, reforça Beatriz Rubio.”Está a notar-se muito em localidades pequenas como Linhó, Terrugem ou outras perto do IC19, onde ainda se conseguem encontrar terrenos com pequenas casitas, algumas que até já começaram a ser refeitas e estão a ficar um espanto”.
Jorge Ferreira, agente Remax Siimgroup Miraflores, confirma esta tendência, bem como o início do seu rastro já antes da pandemia. Em cima do primeiro confinamento, em Março de 2020, vendeu uma propriedade de cerca de 450 m2, incluindo uma casa em estado de ruína com 85 m2 e um terreno com algumas árvores de fruto, na pacata povoação de Vila Verde, concelho de Sintra, por 115 mil euros. Inserido em ambiente quase de aldeia e, contudo, a escassos seis quilómetros da vila histórica e património da Humanidade e com rápida ligação a algumas importantes estradas de acesso a Lisboa, Cascais ou Mafra e Ericeira, o imóvel “registou desde cedo muita procura e uma grande diversidade de interessados, desde investidores em busca de uma oportunidade para recuperar uma casa em ruínas para depois a revenderem e conseguirem um bom retorno do seu investimento – um tipo de negócio que se multiplicou bastante nesta zona, transformando a face da vila – até às famílias em busca do sonho de uma moradia no campo, numa espécie de premonição do que se seguiria…”.
O comprador do terreno acabou por ser um investidor particular que tem já vários imóveis na zona e que os recupera, tornando-os a vender com uma boa margem de lucro.
Uma dinâmica de mercado que não está, no entanto, a ser devidamente acompanhada pelas autarquias no que diz respeito aos processos burocráticos implícitos para a edificação das casas, alerta a CEO da Remax. “A verdade é que a pandemia e o regime de teletrabalho imposto aos funcionários das autarquias estão a atrasar muito os processos de licenciamento de construção, a emissão de licenças de utilização, etc. E isso não está a acontecer em uma ou duas autarquias. Está a suceder em várias. E isso é péssimo para a economia”, frisa ainda a responsável, apelando a mais celeridade nos processos de aprovação dos projetos.
Que bem que se está no campo
Num outro registo, mais campestre, somam-se também transações de terrenos (e não só) assegurados por uma nova fileira de clientes marcados pelos condicionalismos da Covid-19. Na Portugal Rur, empresa especializada na venda de quintas, herdades, casas de aldeia, montes e outros imóveis rústicos, 2021 encaminha-se já – apesar de nem ir a meio -, para ser o melhor ano de sempre desta empresa com 21 anos de existência, garante Francisco Grácio, diretor-geral da empresa sedeada em Proença-a-Nova.
“Ao perfil habitual de clientes que já compravam este tipo de imóveis para férias ou fins-de-semana, surgiu, pouco depois da pandemia, um novo cliente: aquele que repentinamente se imagina mesmo a passar longas temporadas no campo ou quer mesmo cortar amarras com a cidade e iniciar nova página da sua vida. “São clientes que vêm dos grandes centros urbanos e que se entusiasmaram com a possibilidade de poderem trabalhar à distância. Chegam em busca de outra qualidade de vida e dão valor às coisas simples como terem uma horta biológica, por exemplo. Mas não dispensam ter uma boa velocidade de Internet para poderem trabalhar, o que felizmente é cada vez mais fácil pois o interior vai ficando dotado de fibra”, conta o responsável da Portugal Rur, realçando o momento único que se vive, com a possibilidade de se voltar a assistir a um reforço da população nas aldeias despovoadas.
Com uma carteira de cerca de 800 imóveis online por todo o país (e mais do dobro em processo de certificação), a Portugal Rur tem registado mais procura por imóveis no Alentejo, Beira Interior e Ribatejo. “Pedem-nos habitualmente localizações que estejam a duas horas ou duas horas e meia no máximo da sua primeira habitação”, especifica Francisco Grácio, acrescentando que o intervalo de valores para investir “vai desde os 50 mil euros (pequenas quintinhas com casas em ruínas para recuperar) até aos 200 ou 300 mil euros (quintas com habitações prontas a habitar)”.
Na Remax Mor, em Montemor-o-Novo, vive-se também com entusiasmo este momento. “Logo em abril de 2020, pouco depois do início da pandemia, começaram a surgir-nos mais clientes, principalmente de Lisboa e da Margem Sul à procura de pequenas quintas e casas na aldeia. E aparece-nos de tudo: desde os casais mais novos com filhos pequenos até casais seniores”, diz Rui Ramos, o broker da agência, especificando que “ao contrário dos compradores pré-pandemia que tinham mais capacidade de financiamento próprio, esta nova clientela, por regra, necessita de financiamento bancário para concretizar as transações”.
Também os estrangeiros, já residentes em Portugal, estão bastante ativos na compra de imóveis rústicos. “São franceses, belgas, alemães, holandeses, pessoas que já conhecem bem Portugal e dividem a sua vida entre o nosso país e o seu país natal ou que já costumavam vir para cá de férias”, especifica ainda Rui Ramos.
Um movimento que Francisco Grácio confirma também na Portugal Rur e que acredita irá aumentar nos tempos mais próximos. “Estou convicto que até ao final do ano, com a pandemia mais controlada e o aumento da circulação das pessoas vindas de fora, as vendas a estrangeiros irão aumentar ainda mais, muito alicerçado também em programas como o Residente Não Habitual”, afirma o responsável. “Acredito mesmo que o interior vai ser o futuro”, frisou ainda.
Logística já não é o patinho feio
Mas não é só o interesse dos particulares que está a estimular a dinâmica no mercado assente na transação de terrenos. A pandemia veio também mexer com o setor da logística que agrega, entre outras áreas, a necessidade de espaço de armazenagem, que se tornou fundamental com a explosão do comércio eletrónico a nível global, durante os sucessivos períodos de confinamento.
A consultora B.Prime apresentou recentemente um estudo sobre o setor da logística na Europa ocidental e que aponta para uma procura adicional de armazéns, na ordem dos 16.7 milhões de m2 para fazer face a este estatuto reforçado do e-commerce (que veio para ficar).
“A pandemia expôs a importância da logística na forma como garantiu o funcionamento da sociedade e a operacionalidade dos diferentes setores de atividade. No período de confinamento tivemos apenas a confirmação que o armazenamento de bens essenciais e a sua rápida reposição são essenciais para um normal funcionamento das necessidades básicas de um país. A logística fez a ponte entre os sucessivos confinamentos e o comércio on-line”, aponta-se no estudo da B.Prime.
Jorge Bota, diretor-geral da consultora, não tem dúvidas que mesmo sem confinamento o comércio online manter-se-á em alta. “As pessoas habituaram-se pois é cómodo, prático, não tem custos adicionais e funciona. Portanto, veio para ficar. O crescimento é que já não vai ter o mesmo ritmo verificado durante os dias da pandemia, será um bocadinho mais lento”, realçou o responsável.
Uma dinâmica que está a estimular uma significativa procura de terrenos para a construção de armazéns de aprovisionamento dos produtos encomendados. “Costumamos mesmo dizer que a logística passou de patinho feio a cisne deslumbrante do mercado imobiliário comercial”, graceja o diretor da B.Prime.
E se a procura de espaços é significativa, a oferta nem tanto. “Estas são as vendas que mais subiram nos últimos dois anos – os armazéns de proximidade, da chamada last mile (“a última milha”, a etapa final da entrega) cresceram praticamente 50% nos últimos dois anos, o que é muito forte. Portanto, existe oferta, não existe é na quantidade que a procura tem neste momento. Mas também por isso existem muitos promotores internacionais que estão a entrar em Portugal e a apostar fortemente neste subsector da logística (o last mile). Existem vários projetos neste momento em desenvolvimento, para responderem precisamente a esse crescimento nesta área”, aponta Jorge Bota.
Ana Gomes, diretora do departamento de “Development&Living”, da Cushman&Wakefield (CW) corrobora, dizendo que esta nova dinâmica vai implicar a necessidade de espaços estrategicamente localizados junto às cidades, sejam terrenos, sejam áreas de retalho que necessitarão de passar pela reconversão.
“Por isso, agora, o importante, é o licenciamento. Porque muitas vezes esse tipo de espaço requere uma alteração de uso e isso pode demorar. Também tem de ser adaptado para armazém, com entradas e saídas de cargas e descargas, etc”, lembrou a responsável.
O responsável da B.Prime reforça, frisando que uma das tendências na logística, neste momento, tem a ver, com a altura da construção diretamente associada à questão da robotização dos armazéns (com um mínimo de 15 metros de altura). “Hoje em dia, um armazém tem poucos colaboradores, é tudo robotizado, máquinas que vão às prateleiras buscar o que é necessário. E para isso acontecer, para haver essa rentabilização, é preciso que os armazéns tenham uma altura bastante razoável e bastante interessante para poder haver o retorno desse investimento. E isto reflete-se, de facto, na questão dos terrenos e da bolsa de terrenos. Porque alguns terrenos não permitem a construção muito alta de armazéns”, explica o responsável, acrescentando que este é um desafio para as autarquias que queiram ter empresas instaladas no seu território, uma vez que muitos PDMs (Plano Diretor Municipal) não contemplam ainda este tipo de requisitos técnicos que só agora começam a surgir.
O impacto da pandemia vai ainda obrigar o país a repensar a forma como estruturou as periferias dos grandes centros urbanos, aponta Ana Gomes, lembrando que a consolidação do teletrabalho tem implicações na forma como as pessoas vão viver, trabalhar e deslocar-se no futuro.
Nunca como hoje se fala tanto do conceito “15 minute city”, a cidade a 15 minutos, que defende uma planificação urbana residencial onde os residentes possam atender à maioria das suas necessidades (incluindo trabalhar) a uma curta caminhada ou passeio de bicicleta de suas casas.
“Para mim, o que significa a tentativa de aplicação deste conceito em Portugal? É tentar ordenar um pouco a forma como estas zonas menos centrais foram crescendo nas últimas décadas. E a verdade é que nunca houve um verdadeiro planeamento urbano tão rigoroso como em muitos outros países. E por isso os subúrbios de Lisboa e Porto cresceram de forma completamente desregrada, sem articulação entre municípios, com uma fraquíssima oferta de equipamentos e serviços. E esse é o grande problema: como é que se pode aplicar o conceito da cidades dos 15 minutos nos nossos subúrbios quando há tanta falta de equipamentos e serviços nas periferias?”, questiona a responsável da CW.
Nesta lógica e com o teletrabalho a tornar-se uma norma em muitas empresas, começa-se, pois, a discutir o impacto que poderá ter na produtividade dos seus colaboradores, muitos dos quais sem as condições ideais para desempenhar as suas funções nas próprias casas. Em algumas cidades europeias começam a multiplicar-se os centros de coworking nas periferias, como pontos de apoio para quem não consegue trabalhar em casa.
“Em todo o mundo, as empresas estão ainda a assimilar o que está a acontecer, a analisar internamente todas estas situações e a tentar perceber como vai ser o trabalho no futuro. Algumas já estão a começar a contratar “free passes” para os seus colaboradores poderem utilizar o espaço de coworking mais próximo da sua casa e dar-lhes essa liberdade de poderem utilizar essa opção. Mas não existem ainda muitas certezas. É preciso dar tempo”, rematou ainda o diretor-geral da B.Prime.
Tendências que se estão a consolidar e que estão a reconfigurar a forma como se vive e trabalha nas cidades e cada vez mais nas zonas rurais.