A vida na Terra, tal como a conhecemos hoje, vive, provavelmente, o maior desafio de sempre: alimentar mais de 8 mil milhões de pessoas de forma sustentada. Chegados aqui, não podemos deixar de perguntar: os caminhos e as soluções propostas, globalmente, têm sido as melhores? Por quanto mais tempo a insustentabilidade em que vivemos é suportável pela Terra?
Este ano, mais uma vez em julho, atingimos o Earth Overshoot Day (dia da sobrecarga da Terra). Todos os anos, este dia é antecipado. Em Portugal, chega mais cedo cerca de dois meses, em maio, o que significa que vivemos 7 dos 12 meses com os recursos que não temos, o que torna o nosso país absurdamente insustentável.
Um pouco ao revés do que tem sido proposto, a vida local ajuda-nos a perceber o que podemos e devemos fazer pelo bem comum. Chamo a este claro caderno de encargos Transição Local. É à nossa porta, na escala local, que tudo se passa e, obviamente, se torna mais claro e percetível. É também no local que os recursos essenciais à vida, solo e água, existem e agimos sobre eles. É também na vida local que os 5 sentidos, de que somos privilegiadamente dotados, se manifestam/expressam. Na verdade, quase tudo nos afasta do tato, que nos transporta ao incontornável toque; do olfato, que nos faz sentir de maneira clara as estações do ano; e do paladar, que nos liga, como nenhum outro sentido, à nossa terra. O local onde nascemos, ou vivemos, marca-nos profundamente. No sentido inverso, muito além do contexto geográfico, “contaminamos” e apropriamo-nos do “nosso” lugar, há como que uma fusão e as duas partes são uma. Muito mais do que espaço ou território, o local tem identidade física, mas também cultural. É por tudo isto que os lugares têm escala, isto é, uma dimensão adequada para quem neles vive. Será que as realidades políticas são condicionadas e moldadas pelas contingências biofísicas mais básicas? Julgo que sim, já isto dizia o mestre Orlando Ribeiro. Mas, entretanto, outros autores veem, não o contrário, mas o complemento, uma espécie de “territorialidade relacional”. Assim, não há uma, mas múltiplas territorialidades, no mesmo país; a mesma paisagem, o mesmo bairro, encobrem uma vastidão de processos relacionais entre as pessoas e entre estas e o meio. Quando, quase nada sobra, resta o local e a sua alma, a identidade, os vizinhos de sempre, ou os novos que chegam. Este espaço geográfico a que chamamos lugar é muito mais do que uma posição e uma situação geográfica, assume uma natureza essencial, a ideia de que existe uma relação entre o lugar e as coisas ou os indivíduos que aí se encontram. Se o espaço é infinito, o lugar é circunscrito, associado a um limite, isto conforta-nos e compromete-nos. O lugar remete para a segurança, a estabilidade. Assim, o lugar é menos abstrato que o global, sendo composto por um certo número de valores que cada indivíduo apropria, alimenta e transforma. E, felizmente, tudo isto temos em quantidade suficiente para mantermos a esperança de lugares vivos e vividos. É aqui e agora, em cada lugar, que os recursos naturais e a própria vida têm expressão.
Entretanto, não parece, mas vivemos a década da Restauração dos Ecossistemas lançada pela ONU em 2021. “A missão da Década das Nações Unidas, a Restauração de Ecossistemas, é tão importante quanto assustadora”, diz Tim Christophersen, coordenador da Década das Nações Unidas com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). Antes disto, a ONU lançou os conhecidos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), com metas para 2030, um perfeito fiasco. Numa desesperada fuga para a frente, ou para nos distrair, eis que em meados de setembro, em Nova Iorque, a ONU na Assembleia Geral das Nações Unidas realiza a Cimeira do Futuro de onde resultaram, segundo a sua retórica, “três importantes e históricos programas”: Pacto para o Futuro; Declaração sobre as Gerações Futuras e Pacto Digital Global. Obviamente que tudo isto vai dar em nada.
Como resolvemos esta encruzilhada civilizacional? Não há solução mágica, muito menos uma resposta única, a situação é verdadeiramente muito complexa para que assim seja. Temos de ponderar várias respostas, experimentar e implementar várias soluções parciais que todos compreendam e se possam envolver. É aqui que a Transição Local, como um somatório de várias e pequenas ações, se assume como um caminho credível e sustentável para que todas as comunidades o possam cumprir. O local é a escala em que todos vivemos e compreendemos, só aqui conseguimos envolver verdadeiramente as pessoas, é tempo para que as diferentes organizações decisoras o saibam e façam.
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