Zanele Muholi: A retratar corpos oprimidos desde 2000

Zanele Muholi: A retratar corpos oprimidos desde 2000

É uma daquelas coincidências: ver uma exposição de Zanele Muholi numa altura em que as diretivas trumpistas têm acendido o rastilho contra as políticas de inclusão, de género e de justiça racial convida a um aprofundamento do campo de visão, insufla hipóteses de resistência.

Zanele Muholi, retrospetiva da artista não binária sul-africana, coorganizada pela Tate Modern londrina e o Museu de Serralves, é a primeira grande apresentação da sua obra em Portugal. E a força dos números é importante: o espaço museológico apresenta mais de 200 fotografias, a preto e branco e a cores, pontuadas por uma linha do tempo documental que evoca tanto o apartheid na África do Sul como a ditadura em Portugal.

A artista sul-africana Zanele Muholi fotografada, em Serralves, junto de um dos seus autorretratos

Tal como uma manifestação é impossível de ignorar no espaço público, também a abundância destes rostos e corpos, destas peles e poses, é uma declaração contra a invisibilidade – eles e elas não caminharam silenciosamente para a noite escura. Zanele Muholi acendeu um holofote que nunca mais se apagou.

“A minha missão é reescrever a história visual negra queer e trans da África do Sul para o mundo conhecer a nossa resistência e a nossa existência durante o período crítico dos crimes de ódio na África do Sul e mais além”, afirma Zanele.

“Artista ativista”, Muholi quis ser mais do que testemunha de injustiças sociais, tal como o seu mentor na escola de fotografia em que se inscreveu aos 31 anos. O fotógrafo sul-africano David Goldblatt (1930-2018) documentou as condições de vida sob o jugo do apartheid. Mas Zanele Muholi conhecia as costuras e os riscos da comunidade negra LGBTQIA+: fazia parte desta. E reclamou o direito a serem eles a contar a sua própria narrativa.

Espelhos

A retrospetiva já passou por Paris, Berlim, Copenhaga e São Paulo. No Porto, Zanele Muholi expandiu-se pela mão das curadoras Inês Grosso e Filipa Loureiro e na colaboração com o atelier de arquitetura Ventura Trindade. “Queríamos que esta fosse uma exposição muito importante, que agitasse o contexto português”, defende Inês. “Numa altura em que figuras como Trump ameaçam direitos fundamentais, e com o retrocesso dos direitos civis e o crescimento do discurso do ódio em vários países, o trabalho e o ativismo de Muholi lembram-nos de que a arte é uma forma de resistência e de luta, neste caso sobre a invisibilidade dos corpos dissidentes”, defende à VISÃO a curadora.

Um dos aspetos que mais distinguem o trabalho de Zanele Muholi é o facto de não haver uma exploração da dor

Inês Grosso, curadora

As séries fotográficas icónicas de Zanele Muholi alinham-se: Being capta, desde 2006, momentos de intimidade entre casais do mesmo sexo; Faces and Phases é uma arca com centenas de retratos de pessoas LGBTQIA+, da África do Sul e não só.

A série Queering in the Public Space mostra elementos da comunidade negra queer fotografados em lugares que lhes eram vedados durante o apartheid, como a praia de Durban – perto de Umlazi, o gueto negro onde Muholi nasceu, em 1972, filha de um comerciante, que morreu jovem, e de uma mãe que trabalhou como empregada doméstica de famílias brancas para sustentar os oito filhos. Há ainda Only Half the Picture, série intimista dedicada a vítimas de crimes de ódio – uma sala dentro da sala, com a “luz espiritual” da claraboia de Siza Vieira a iluminar.

Inês Grosso escolheu ampliar, aqui, duas séries “mais antigas e menos conhecidas”: Being e Only Half of the Picture. À VISÃO, sublinha: “Um dos aspetos que mais distinguem o trabalho de Zanele Muholi é o facto de não haver uma exploração da dor. Todas as pessoas são sempre tratadas com dignidade, empoderadas. Being é uma celebração da intimidade, do afeto, mas há um gesto político potente, e estes corpos dissidentes são retratados de uma forma não voyeurista; mostram a vida do dia a dia, do toque, de pele com pele.”

Zanele Muholi também se retratou em frente da câmara. A célebre série Somnyama Ngonyama (expressão zulu traduzida como Viva a Leoa Negra), iniciada em 2012, revela autorretratos num preto e branco inclemente, em que a artista surge associada a objetos simbólicos que remetem para a História do seu país.

Em Serralves podem ver-se, ainda, retratos da comunidade queer em Portugal, captados por Zanele Muholi dois ou três dias antes da inauguração da exposição, com o apoio da Associação Casa Odara e da Ilga Portugal.

“Zanele Muholi é alguém que faz uma diferença gigante no mundo”, conclui Inês Grosso, “com as suas obras, a sua força, resistência, generosidade; ofereceu, por exemplo, bolsas de estudo de fotografia. É muito mais do que o produto de uma agenda: é uma voz importante na defesa dos direitos e na luta das pessoas negras da comunidade LGBTQIA+ no contexto de um país e globalmente, ultrapassando as questões do mercado da arte e do eurocentrismo”.

Zanele Muholi > Museu de Serralves > R. Dom João de Castro, 210, Porto > T. 226 156 546 > até 12 out, seg-dom 10h-19h > €12

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