Confúcio defendia que se quiséssemos prever o futuro, teríamos de estudar o passado. Afinal de contas, volta atrás, ou Ritornare [em italiano], como o título da mais recente exposição de Vasco Araújo, é sempre um exercício de tomada de consciência, de identificação de uma génese, padrões, ou a falta deles, uma procura de pistas que ajudem a definir uma identidade.
A tal exercício serve a memória, é claro. Não no sentido de se convocar o passado para o presente, de forma estática e imutável, mas de usá-lo como matéria de construção, na qual o principal ingrediente é a identidade.
É precisamente sobre a sua identidade que Vasco Araújo se debruça em Ritornare, patente na Galeria Francisco Fino até 16 de novembro. “É o regresso ao que realmente fui e ainda sou, é o regresso à minha identidade e à construção da mesma através da voz, é o regresso ao corpo, ao corpo do passado, do presente e do futuro”, afirma o artista.
As obras expostas convidam-nos a embarcar numa viagem ao universo da ópera e das suas divas, recorrentemente abordado no início da carreira de Araújo como território de travestimento, “de fazer de conta”, e de procura de identidade, abandonado, porém, no momento em que o artista perdeu várias dezenas de quilos.
Hoje, defende que associar a forma do corpo à sua identidade não faz sentido e, por essa mesma razão, decidiu regressar ao tema da ópera numa mostra que, sublinha, não é antológica, mas antes “um olhar para os 25 anos passados, através de obras inéditas, criadas propositadamente para a exposição”.
Por exemplo, à entrada da galeria, S’HE #1, fotografia realizada a partir de um auto-retrato em Polaroid, captado em 2000, na qual Vasco Araújo aparece vestido de cantora de ópera, faz-se acompanhar de um texto que “descreve a identidade como um sistema artificial, moldado por escolhas e circunstâncias”, escrito este ano.
As esculturas, vídeos, instalações e fotografias apresentadas em Ritornare jogam ainda com o limite que separa realidade de ficção, como se de um mockumentary se tratasse.
Questionamo-nos constantemente se o que estamos a ver é um relato real, pura ficção, uma versão dos acontecimentos segundo a perceção do artista ou uma construção narrativa que se serve de ambos os lados da barricada.
Não sabemos se a biografia, escrita à mão, na primeira pessoa, em La Superba, é a história da vida da mulher que aparece nas fotografias que a acompanham, do artista ou de outra personagem qualquer.
Da mesma forma, My Way, instalação composta por cinco charriots, nos quais estão pendurados 107 figurinos acompanhados por etiquetas com todas as performances de Maria Callas, de 1938 a 1960, deixa a dúvida relativamente ao verdadeiro proprietário daqueles vestidos. Callas ou a Araújo?
“Todos nós temos um yin e um yang, desdobramo-nos em várias coisas. Essa desdobragem permite questionar uma série de outras coisas, desde quem sou eu, até quem sou eu perante uma determinada situação, ou perante uma determinada figura”.
A dualidade referida por Araújo é evidente Entre Actos (Vissid’Arte, Vissid’Amore), escultura baseada na maquete de um teatro, dentro da qual dois vídeos mostram, em lados opostos, imagens de Maria Callas a interpretar La Traviata, Tosca e Norma, e imagens do artista imitando-a.
O jogo da ilusão atinge, enfim, o apogeu em Interview, vídeo no qual Vasco entrevista Vasco. As respostas não são suas, mas poderiam ser.
Afinal de contas, um artista, esteja no palco, no atelier ou ecoando nas suas obras, será sempre aquele que dentro de si tem “algo para oferecer aos outros, às pessoas”, aquele que, perante a pergunta “por que razão ainda canta?”, não hesitará em responder “porque gosto de ter uma voz própria”.
Acima de tudo, é aquele que sublinhará o facto de o uso de tal voz não ser “um ato de vanglória, mas antes uma tentativa de elevação humana, com tudo o que isso tem de pretensioso, claro”.
Vasco Araújo: Ritornare > Galeria Francisco Fino > R. Capitão Leitão, 76, Lisboa > até 16 nov, ter-sex 12h-19h, sáb 14h-19h > grátis