James Marsh começou por se destacar enquanto documentarista, ao receber um Oscar da Academia para Homem no Arame. Contudo, as solicitações acabaram por transformá-lo numa espécie de especialista em biopics. Aconteceu com A Teoria de Tudo, aclamada biografia do físico Stephen Hawking (1942-2018), e assim acontece em Dança Primeiro, Pensa Depois, um retrato do Nobel irlandês Samuel Beckett (1906-1989). Diga-se que esta última é uma obra bem mais arriscada, desde já porque Beckett, nos dias que correm, não goza da popularidade mediática de Hawking e, depois, porque a sua escrita e personalidade são tendencialmente soturnas e despojadas.
Marsh cria um dispositivo quase beckettiano para lançar o enredo. No momento de receber o Nobel, o escritor sobe a escadaria, por trás do palco, que vai dar a uma espécie de Olimpo da consciência, onde se encontra com o seu duplo. Esse mesmo duplo – algo entre o subconsciente freudiano e o grilinho de Pinóquio – obriga-o a repensar a sua vida, à luz da culpa e dos arrependimentos.
Pretexto certo para entrar numa máquina do tempo e ir até à sua Irlanda natal, passar pelo convívio com James Joyce em Paris, assistir à adesão à resistência francesa, durante a II Guerra Mundial, aos amores e desamores e, sobretudo, à intransigência perante o próprio ofício de escritor.
Essa obstinação quase monástica é o ponto-chave para se entender a personagem. Beckett pôs a escrita acima de tudo, e houve momentos em que quase abdicou de viver em nome da sua literatura. Não obstante, para quem tanto escreveu sobre a inoperância e a inação do Homem, diga-se que Beckett viveu bastante.
O realizador optou por filmar a preto-e-branco, conceito fotográfico que se enquadra bem no próprio espírito beckettiano e nos remete para a época. Gabriel Byrne é muito convincente enquanto Beckett, num duplo papel em que se lhe pede o talento para contracenar consigo próprio. Ao filme faltam as peças de Beckett, que mal são citadas… enfim, para isso podemos sempre ir ao teatro.
Dança Primeiro, Pensa Depois > De James Marsh, com Gabriel Byrne, Aidan Gillen, Sandrine Bonnaire > 100 min