Yves Saint-Laurent nasceu na Argélia em 1936, mas só nos anos 60 visitou Marrocos pela primeira vez. Foi em 1966, com o seu companheiro de sempre, Pierre Bergé, e dessa viagem deixou algumas impressões que muito revelam a importância da descoberta – para a vida e, sobretudo, para toda a arte que viria a produzir. “Descobrir Marraquexe foi um grande choque. A cidade abriu-me os olhos para a cor”, disse. Esta explosão cromática é, aliás, o que mais se destaca nas descrições que fez então: “Em cada esquina de Marraquexe, deparamo-nos com deslumbrantes grupos de homens e mulheres que aparecem como que em relevo, cafetãs cor-de-rosa, azuis, verdes, violetas, fundindo-se uns com os outros. É surpreendente constatar que estes grupos, que parecem desenhados ou pintados, são na realidade arranjos espontâneos da vida quotidiana.”
Em 1966, o entusiasmo foi tal que Yves Saint-Laurent e Pierre Bergé saíram dessa primeira visita a Marraquexe já com um contrato de compra de uma casa nas mãos. Nas décadas que se sucederam, o casal seria proprietário de outros edifícios na cidade, nomeadamente, da Casa da Serpente, na medina, e do Majorelle, o jardim botânico criado em 1931 sob a inspiração dos jardins islâmicos. “Fomos seduzidos por aquele oásis onde as cores de Matisse se misturam com as da Natureza”, explicaram. Recuperaram o jardim, chamaram-lhe Villa Oásis e, hoje, Majorelle pertence a uma fundação subsidiária da Fundação Pierre Bergé – Yves Saint Laurent, incluindo também um museu da cultura berbere. A ligação era de tal maneira forte que, em 2008, quando o criador de moda morreu, as suas cinzas foram depositadas no roseiral da villa.
Serve tudo isto para justificar o contexto em que nasceu Love – Marrakech Opened My Eyes to Colour, que até ao final de outubro estará patente em várias áreas do Palácio dos Duques de Cadaval, em Évora. Trata-se de uma exposição, apresentada em três capítulos, acerca da influência que a cidade marroquina exerceu sobre a obra de Yves Saint Laurent. O próprio assumia, aliás, essa herança de forma bastante direta: “A ousadia do meu trabalho, devo-a a este país, às suas pujantes harmonias, às suas arrojadas combinações, ao fervor da sua criatividade.” O passado vem assim ao caso para explicar as origens do projeto de Évora, mas na verdade a mostra é para o futuro que aponta, conforme conta, em entrevista à VISÃO Se7e, Alexandra de Cadaval. Depois das obras de restauro que nos últimos anos tiveram lugar no Palácio Cadaval, a ideia também é, prossegue a organizadora e curadora, diversificar a oferta cultural na região: “Propomos um novo programa cultural no Alentejo, queremos partilhar algo de novo com a região e com o País, partilhar a nossa casa, um testemunho da História de Portugal, ter as portas abertas a todos.”
A luz e o feitiço
A exposição tem início na igreja do Palácio Cadaval. A acompanhar os painéis de azulejos do século XVIII, que representam cenas da vida de São Lourenço Justiniano, Patriarca de Veneza, estão agora 14 coordenados, num trabalho de pesquisa que junta peças criadas por Yves Saint Laurent entre 1970 e 1990, provenientes do acervo da Fundação Pierre Bergé – Yves Saint Laurent e também de coleções particulares. Foram aqui reunidos com o intuito de demonstrar, nas palavras de Stephan Janson, o designer francês que assume a curadoria desta parte da exposição, “a perfeição de um estilo, mais do que um entusiasmo sazonal” que caracterizava o trabalho de Yves Saint Laurent. “Eu diria que ele caiu completamente no feitiço de Marrocos. Não só do seu povo ou das suas tradições, mas também na qualidade da luz sob o céu de Marraquexe. Foi lá que ele descobriu a intensidade da luz e o seu efeito nas cores, dando início a um jogo de cores sem fim e tornando-se um mestre colorista”, nota Stephan Janson.
Love – Marrakech Opened My Eyes to Colour continua, depois, pelas várias salas do palácio. À medida que caminhamos, as coincidências também prosseguem: o Palácio Cadaval foi mandado construir no século XV por D. Rodrigo de Melo, primeiro governador de Tânger, em cima das ruínas de um castelo mourisco cuja cisterna ainda hoje é possível observar na igreja do palácio. Na segunda parte da exposição, o destaque vai para o trabalho do artista e estilista Noureddine Amir, que foi o primeiro criador marroquino a apresentar uma coleção de alta-costura em Paris, a convite da Fédération de la Haute Couture, em julho de 2018. Como sublinha Alexandra de Cadaval no texto do catálogo que acompanha a mostra, Noureddine Amir inspira-se no artesanato e nos materiais da sua terra natal e, através das suas peças construídas em juta, ráfia, algodão ou lã, acaba por diluir as fronteiras entre a arte, a arquitetura e a moda.
A ideia de Alexandra de Cadaval é de que, de agora em diante, o palácio eborense possa acolher uma programação regular ligada à arte e à música, passando assim a funcionar como um novo polo cultural da cidade. Na verdade, este projeto teve início há quatro anos, quando em 2018 Alexandra aqui inaugurou African Passions, uma exposição que levou ao Alentejo alguns nomes da arte africana contemporânea, como Chéri Samba (Congo), Marcel Miracle (Madagáscar), Frédéric Bruly Bouabré (Costa do Marfim), Filipe Branquinho (Moçambique) ou Omar Victor Diop (Senegal).
No primeiro piso, desenvolve-se, depois, a terceira parte de Love, inteiramente dedicada à arte contemporânea marroquina. Estão reunidos 12 artistas de diferentes gerações, que utilizam diversas técnicas, do acrílico ao vidro e ao vídeo. A saber: Amina Agueznay, Malika Agueznay, Nassim Azarzar, Meriem Bennani, Yto Barrada, Hicham Berrada, M’Barek Bouhchichi, Soufiane Idrissi, Mohamed Melehi, Sara Ouhaddou, Younes Rahmoun e Saladi. Esta parte tem início com um quadro de 1985 (da autoria de Saladi, justamente), que representa o Majorelle, o tal jardim-fonte de inspiração que Yves Saint Laurent e Pierre Bergé acabaram por comprar.
Distribuídos pelas várias salas do piso, a unificar todas as obras, estão ainda os postais que, durante 27 anos, Yves Saint Laurent desenhou. Eram enviados aos amigos a partir de Marraquexe e, invariavelmente, tinham inscrita a palavra “amor”. A crítica de arte Mouna Mekouar, que assina a curadoria desta parte da exposição, potenciou o diálogo entre os elementos gráficos utilizados nos postais de Yves Saint Laurent e as obras apresentadas. Segundo ela, estes postais/posters “refletem a paixão do designer pelas cores vibrantes do seu país de adoção”. “São usados como fio condutor ao longo da exposição e vemo-los ao lado do trabalho dos artistas contemporâneos que têm, em comum, o fascínio pela cor”, explica. Em comum os 12 artistas têm também, argumenta ainda Mouna Mekouar, “um espírito de liberdade, invenção e poesia”.
Love – Marrakech Opened My Eyes to Colour > Palácio dos Duques de Cadaval > R. Augusto Filipe Simões, Évora > Até 30 out, ter-dom 10h-18h > €12,50 (bilhete conjunto para igreja e exposição), grátis menores de 12 anos