O neorrealismo russo ganha pertinência na justa medida em que os seus realizadores desbravam os trilhos interiores do país, em busca das suas histórias. E há muitas histórias para contar. Exemplo maior é este Descerrando os Punhos, vencedor da secção Un Certain Regard, em Cannes. O filme dá-nos uma sensação aguda de anacronismo, de um exotismo gélido, ao mesmo tempo que se assume assustadoramente contemporâneo.
Há uma distância larga da habitual estética soviética, mas nem por isso o filme se aproxima do neorrealismo italiano de Visconti ou De Sica. Sobretudo porque nas terras geladas da Ossétia do Norte, numa cidade industrial, mas socialmente atrasada, há um outro estar em sociedade, permanentemente frio e desligado, sem o espírito comunitário e atuante que, apesar de tudo, se encontrava na Itália dos anos 40.
O filme é feito de personagens desligadas socialmente. Uma família constituída por um pai, dois filhos e uma filha. Vivem em isolamento social. Essa ausência de uma rede de afetos exterior faz com que tudo se procure no interior da família. O filme está, aliás, cheio de insinuações incestuosas. Há uma violência implícita de grande brutalidade, que só se concretiza do ponto de vista psicológico. Numa sociedade patriarcal, o pai domina e controla os seus filhos. Ada sofre de uma doença grave, precisa de ser operada, mas o pai resiste à ideia, pois julga que assim assegura que ela permanece em casa a cuidar de si.
Na luta de afetos contraditórios, entre a violência doméstica clara e a síndrome de Estocolmo, Ada luta pela sua própria sobrevivência. Toda a realidade é bruta. Mas há rasgos de luz, como o encontro de Tamik com Ada, que lhe devolve esperança, num gesto de amor. O filme, de resto, constrói-se num ambiente radicalmente austero, credível e bem desenhado, com cenas marcantes e simbolicamente explícitas. Nada disto seria possível sem a fabulosa interpretação de Milana Aguzarova que nos guia até aos confins da alma da personagem.
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Descerrando os Punhos > De Kira Kovalenko, com Milana Aguzarova, Alik Karaev, Soslan Khugaev, Khetag Bibilov > 97 minutos