Aos 69 anos, bem gastos e vividos, Abel Ferrara não terá tido propriamente uma epifania, mas o seu momento Árvore da Vida. Só que enquanto Terrence Malick se aventurou por uma megalomania espiritual e ambiciosa de querer explicar o universo inteiro em 180 minutos, num filme grandiloquente e petulante ao estilo New Wave, em Sibéria, Ferrara tenta virar a câmara para o lado de dentro, com uma dimensão quase xamanista e certamente freudiana, na tentativa de filmar o subconsciente, com a viagem de um homem em busca de si próprio, enfrentando medos e fantasmas. Uma coisa não é mais fácil do que outra, mas sempre é preferível o tom confessional, quase testamentário de Ferrara, que até nos comove. Sibéria é assim a última boa surpresa, a estrear-se nas salas portuguesas em 2020, o tal ano para esquecer.
Sibéria é o sétimo filme que Abel Ferrara faz com Willem Dafoe, que se tornou o seu ator fétiche. E, tal como como acontecera no anterior Tommasso, Dafoe contracena com a jovem esposa de Ferrara, Cristina Chiriac.
O filme, estreado em Berlim, dá continuidade à parceria entre Abel Ferrara e Willem Dafoe, seu ator fétiche, que se tornou quase um espelho do realizador. Já, no ano passado, em Tommasso, filme de uma simplicidade desarmante, sobre a ausência do amor, deparávamos com essa cumplicidade que torna o ator um autor. Aqui envolve-nos num cenário diferente, que convida ao recolhimento. Dafoe interpreta o papel de Clint, uma espécie de eremita, um homem que se autoexila de vidas passadas, e gere um bar com ar de saloon, no fim do mundo gelado da Sibéria. Os poucos clientes falam com ele em russo, ele responde em inglês. Isto só serve para nos mostrar que é um homem fora do seu ambiente natural. Contudo, o plano real conta pouco neste Ferrara atípico.
À moda de David Lynch, a realidade paralela, sobrenatural, onírica, psicanalítica, subconsciente, intromete-se e ganha protagonismo sobre a realidade palpável. Sibéria passa a ser um objeto impressionista, de um homem em busca da própria alma, num acerto contas com o passado, para se curar ou redimir. Há um encontro com o pai numa gruta profunda, mas também com a mulher e o filho. Fora de tempo, o subconsciente da personagem, em ebulição, dá-lhe uma derradeira oportunidade de se reconciliar internamente com os outros e assim se reconciliar consigo próprio. E Dafoe, neste deserto de neve em que procura uma iluminação espiritual ou interior, até se confunde com o Cristo de Scorsese que ele tão bem interpretou.
Sibéria > De Abel Ferrara, com Willem Dafoe, Dounia Sichov, Simon McBurne e Cristina Chirac > 93 minutos