
O realizador Manuel Mozos tem dividido a sua carreira entre os mundos da ficção e do documentário. ‘Ramiro’ teve a sua estreia como filme de abertura na última edição do festival DocLisboa
Talvez o filme se situe algures no meio caminho entre as comédias portuguesas dos anos 40 e 50 e a trilogia de Deus, de João César Monteiro. Ramiro é, sem dúvida, um filme diferente no panorama recente do cinema português. Uma comédia cheia de subtilezas que foge aos padrões facilitistas dos últimos sucessos nacionais de bilheteiras, mas que também se distingue daquele cinema que traz o peso do mundo às costas.
Conhecendo o percurso do realizador, tudo isso faz sentido. Manuel Mozos é, por excelência, um cineasta de transição, entre gerações, que constrói pontes entre linguagens. Ao mesmo tempo que se formou na Escola Superior de Cinema com Pedro Costa, Teresa Villaverde, Joaquim Sapinho, entre outros, aproximou-se, com participações e cumplicidades, dos cineastas mais novos da chamada “geração curtas” (Miguel Gomes, Sandro Aguilar, entre outros). No caso de Ramiro, isso é flagrante. A história parte de um argumento original que foi oferecido a Mozos por Mariana Ricardo e Telmo Churro, dois dos principais nomes de “bastidores” da nova geração. É assim indisfarçável o aparecimento de uma certa linguagem, mesmo ao nível dos diálogos, próxima sobretudo de Miguel Gomes e João Nicolau. A história em si é feita de personagens-tipo, roçando o caricatural, mas sem que tal se desenvolva até ao limite. Ramiro, o protagonista, acaba até por ser a personagem menos extremada, embora partam dela, da sua reação com o meio, as principais situações de humor.
Ramiro é um alfarrabista e poeta incógnito, maldito e bloqueado, que vive numa Lisboa em vias de extinção. A sua principal característica é a imobilidade. Ele não age, reage, é forçado a tomar decisões. Não obstante, dá por si em situações delicadas, nas quais, através da relação com os outros, se confronta consigo próprio. Nesse sentido, a personagem, ainda que de forma involuntária, sofre uma evolução ao longo da história. Se quisermos, Ramiro, filme em que se passam poucas coisas, fala-nos da transformação de quem não quer transformar-se. É, ao mesmo tempo, um retrato de uma Lisboa típica e tosca que ainda resiste. Boas atuações, sobretudo de António Mortágua, com uma expressividade discreta essencial à personagem.
Ramiro > de Manuel Mozos, com António Mortágua, Madalena Almeida, Fernanda Neves, Vítor Correia > 104 minutos