Nas décadas de 1970 e 80, o antropólogo Anthony Shelton andou por vilas e aldeias remotas do México, a estudar máscaras, os seus usos em cerimónias religiosas, no Carnaval, nos protestos políticos e na lucha libre, a versão mexicana do wrestling, onde os lutadores as usam. Um longo trabalho de campo ao qual voltou, o ano passado, para montar Do Carnaval à Luta Livre. Máscaras e Devoções Mexicanas, a exposição que reúne, no Museu de Lisboa – Palácio Pimenta, cerca de 300 máscaras, do final do século XIX à atualidade, provenientes de coleções privadas (incluindo a do próprio comissário da exposição). E que nos dá uma perspetiva sobre o imaginário popular mexicano, revelando, ao mesmo tempo, a história das relações entre os impérios europeus e os habitantes das Américas (neste caso os mexicanos), um dos propósitos da programação do Lisboa, Capital Ibero-americana de Cultura 2017.
À entrada da exposição, um grande espelho confronta-nos com a nossa imagem refletida juntamente com inúmeras máscaras de Carnaval, fazendo-nos sentir parte de um todo. Originais, coloridas e cheias de significado, há máscaras cerimoniais figurativas de tigres, diabos, tritões, serpentes, crocodilos e morcegos que invocam as chuvas ou clamam por tréguas ao céu. E ainda outras que personificam europeus, africanos e mouros. A sua origem perde-se no tempo, “mas ainda hoje continuam a ser feitas, para venda e para uso em festividades, de norte a sul do país”, afirma o professor de Antropologia na Universidade da British Columbia, em Vancouver, que conhece bem Portugal. Anthony Shelton deu aulas durante quase 10 anos na Universidade de Coimbra e estudou a arte popular portuguesa.
O último núcleo, a ocupar duas galerias e que inclui até um ringue, é dedicado à Luta Livre, combinação de desporto, luta e entretenimento, oficializada no México em 1933. E que se tornou um fenómeno nacional, sobretudo nas cidades, com hordas de seguidores fervorosos e dando origem às devoções mais intensas. Através de filmes-documentário, livros de banda desenhada, pósteres e das fotografias da mexicana Lourdes Grobet, descobrimos os criadores das máscaras, alguns lutadores, as suas famílias e o seu contexto social, e o modo tão particular como estes se relacionam com o sobrenatural.
Olhando para o conjunto das máscaras expostas, Anthony Shelton faz notar que quer nas cerimónias religiosas, quer nos filmes, quer nos jogos de luta livre, “tudo se resume a uma coisa: a luta do bem contra o mal. E é por isso que todas elas se conjungam.”
Eis três exemplares, escolhidos e comentados pelo comissário da exposição.
Máscaras de Carnaval. Vêm dos estados de Tlaxcala e Puebla, no centro-sul do México, e representam os europeus. “Quem as usa, veste fato preto e gravata, camisa branca e chapéu preto, ao estilo dandy”, descreve o comissário. “E ainda um guarda-chuva aberto (também preto) que em tempos servia para atrair as chuvas”.
Em exposição estão duas máscaras de tigre, originárias de Zitlala, aldeia numa parte remota do estado de Guerrero, e usadas na Festa da Exaltação da Santa Cruz, uma cerimónia religiosa. Conta Anthony Shelton: “Os habitantes dos três bairros da aldeia eram divididos entre tigres amarelos e verdes. Nesse dia, organizavam-se lutas rituais entre os dois grupos, com os tigres a utilizarem cordas grossas com nós para acertar nos corpos uns dos outros. O sangue das feridas funcionava como uma oferta à Santa Cruz para trazer as chuvas que ajudariam a fertilizar as terras. Estas lutas rituais ainda hoje acontecem”.
“Estas duas máscaras de Tritão nunca foram ‘dançadas’ em cerimónias. Entre os anos 1960 e 1980, muitas máscaras mexicanas foram inventadas para serem vendidas a colecionadores e museus”, revela o antropólogo. “Eram produto da imaginação dos artesãos que procuravam na história pré-colombiana e nas crenças religiosas inspiração para as suas criações. Os espíritos da água e os deuses e deusas da chuva eram comuns na religião pré-columbiana e na mitologia europeia e os artesãos juntaram as duas tradições, para demonstrar a suposta ideia de que o mundo pré-columbiano ainda existia escondido atrás do Cristianismo do pensamento europeu.”
Do Carnaval à Luta Livre. Máscaras e Devoções Mexicanas > Museu de Lisboa – Palácio Pimenta > Campo Grande, 245, Lisboa > T. > até 1 out, ter-dom 10h-18h (última entrada 17h30) > €3