Os artistas plásticos João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira estreiam-se na encenação com um espetáculo de circo, em que serão assistentes de pista
Não faltará nada a este grande circo. Haverá pipocas e farturas, tules, penas, purpurinas, napas e lantejoulas, um canhão e um leilão, equilibrismos e acrobacias, um homem forte e um ventríloquo – e, claro, palhaços e palhaçadas. Ainda o espetáculo não começou e eis-nos a entrar numa enorme tenda, como quem entra para debaixo das saias de uma mulher – é nisso que pensamos quando vemos a atriz Cláudia Jardim, elevada do chão, com um vestido rodado. “Quando uma tenda fala, ninguém a cala”, dirá, dando início a esta “jornada rumo ao desconhecido e à aventura”.
Lá dentro, tudo será possível, sim, havemos de perceber isso rapidamente. E não é por este ser o primeiro espetáculo encenado pelos artistas plásticos João Pedro Vale (JPV) e Nuno Alexandre Ferreira (NAF) que haveria de não ser assim, muito pelo contrário. Quando John Romão, diretor da Boca – Biennial of Contemporary Arts, os convidou para fazerem uma peça de teatro, responderam de imediato: Queremos antes fazer um espetáculo de circo e que se chame Palhaço Rico Fode Palhaço Pobre.” A ideia foi aceite, o título passou. Quem os vê a dirigir os ensaios, com a ajuda do ator Diogo Pombo, nem acredita que nunca fizeram isto.
E se antes tinham imaginado este Palhaço Rico Fode Palhaço Pobre para um filme porno-gay sobre a vida sexual no circo (já tinham feito Hero, Captain and Stranger, a partir de Moby Dick, de Herman Melville, passado a bordo de um navio), agora descobriram-lhe outras possibilidades. “No contexto do nosso trabalho, terá sempre uma conotação sexual este título, mas hoje o palhaço rico a foder o palhaço pobre leva-nos para as questões económicas e para como tudo se resume, na verdade, a ser ou não rico a ter ou não privilégios”, afirma JPV. “De que direitos falamos quando falamos dos direitos dos gays ou das mulheres? Falamos dos direitos dos gays ricos e das mulheres ricas. O que interessa não é ser-se gay ou mulher, o que interessa é ter-se dinheiro. A Isabel dos Santos, por exemplo, tem poder porque é rica, não porque é mulher ou porque é angolana”, reforça NAF.
Olhando para o circo, olham para uma realidade marginal que não se rege pelas mesmas regras que o resto da sociedade. “Existe sempre uma questão económica por detrás de tudo. A integração na normalidade de tudo o que é marginal – como é exemplo o casamento entre pessoas do mesmo sexo – não é mais do que fazer crescer o mercado. Quanto maior o número de consumidores, maior o lucro”, defende NAF. Por isso, defendem – e tem sido uma constante nos seus trabalhos artísticos – é necessário “reclamar o direito à diferença e não à igualdade”, contra uma lógica assimiladora e normalizadora. “É o direito de estar fora desse sistema monstruoso que é sobretudo económico e que se vai autossustentando. A impossibilidade do desvio é a impossibilidade de novas formas de pensamento e a impossibilidade de pôr em causa este sistema”, concordam.
A peça, dizem, montaram-na como uma exposição, pensando nos temas que queriam abordar e organizando-os. Como também já é hábito nas obras da dupla, não faltam referências a outras obras (incluindo as deles), sejam filmes, performances, músicas, pinturas, instalações. “As referências serviram-nos de bengala para a construção do espetáculo, mas, muitas vezes, nem se notam”, diz JPV. Fellini, Picasso, Satie, Tati, Marina Abramovic, John Waters, Klaus Nomi, Beuys ou John Giorno andam por lá, mais ou menos disfarçados, à mercê de serem identificados pelo “respeitável público” – esse que ali abrangerá “senhoras e senhores”, mas também “pessoas bigénero e trigénero” ou de “género influenciável”, “celestial e espacial”, “eteceterosexuais, fascitosexuais, urbanosexuais”… Todos cabem ali, os palhaços de circo, mas sobretudo os outros palhaços.
Museu de Lisboa/Palácio Pimenta > Campo Grande, 245, Lisboa > T. 213 257 640 (Teatro São Luiz) > 31 mar-2 abr, sex-dom 21h > €5 a €12 > Pç. D. João I, Porto > T. 22 339 2200 (Teatro Rivoli) > 7-8 abr, sex 21h30, sáb 19h > €7,50