O boxe tem uma ética. Regras que se cumprem. Não se podem dar golpes abaixo da cintura e não se bate no adversário enquanto ele está caído. A crise quer lá saber. Bate não importa em quem, mas parece que tem particular gosto em espezinhar quem já está no chão. A crise é o grande monstro que paira sobre o último filme de Marco Martins. Uma tremenda personagem invisível que devora tudo em volta e condiciona as ações daqueles que atinge.
Em São Jorge, o realizador Marco Martins viaja até ao submundo dos subúrbios lisboetas para contar uma história de amor e pobreza no local onde a crise mais dói. De início, esteve para ser um filme de boxe, seguindo o desejo do ator Nuno Lopes, que tem aqui um papel decisivo, não só em termos de atuação (foi premiado no Festival de Cinema de Veneza), mas também de pesquisa, desde os primeiros instantes. O boxe, no entanto, acabou por ficar relegado para um discreto contexto (entre outros), que serve para enfatizar uma das muitas histórias da crise que Portugal sofreu durante o período de intervenção da Troika.
Marco Martins opta por um registo naturalista, partindo de uma pesquisa aguçada, próximo do estilo documental, cruzando atores com não atores, para credibilizar os propósitos realistas. A história foi construída através das histórias que os moradores daqueles bairros – é na Bela Vista que São Jorge é filmado – lhe foram contando. Numa visita a um ginásio, o realizador apercebeu-se de que muitos dos pugilistas, no auge da crise, se haviam transformado em cobradores de dívidas.
Assim, centra-se o filme em Jorge, a personagem de Nuno Lopes, que, na ânsia de encontrar uma casa para viver com a mulher e o filho (libertando-se da casa do pai), transgride uma importante linha moral. Jorge é um brutamontes com um coração de miúdo, vítima das suas próprias circunstâncias. Mais do que a história contada, o filme vale pelo ambiente que cria. A forma como Marco Martins se imiscui na vida do bairro, num estilo próximo dos Irmãos Dardenne ou de João Canijo, usando pela primeira vez a câmara em movimento, para transmitir a inquietude da própria personagem. São Jorge é um filme consistente e experimental, comovente e bruto. Uma história de amor em tempos de Troika.
São Jorge > de Marco Martins, com Nuno Lopes, David Semedo, Beatriz Batarda, Gonçalo Waddington, Mariana Nunes, José Raposo, Carla Maciel, Paula Santos, Teresa Coutinho > 112 minutos