É impossível escapar do palco-ringue onde Solange (Beatriz Batarda) e Clara (Sara Carinhas) se digladiam. O público sentado a toda a volta é cúmplice da construção deste espaço sem saída. Duas criadas, também irmãs, aproveitam recorrentemente a ausência da Senhora (Luísa Cruz) para se entregarem a uma fantasia doentia que culmina, invariavelmente, na morte da patroa. Neste jogo perverso, as criadas encenam-se mutuamente, uma faz de senhora e a outra assume o papel da irmã, expondo, assim, o inconfessável prazer da transgressão.
Dentro de um quadrado negro, as irmãs garatujam no chão, a giz, cenários e adereços à medida da narrativa – que são obrigadas a limpar, assumindo a posição de criadas. Neste ringue, em vez de luvas de boxe usam-se luvas de cozinha e, tal como num combate, soa uma campainha sempre que termina mais um round de inversão de papéis. Uma espécie de valsa negra que o coreógrafo Victor Hugo Pontes ajudou o encenador Marco Martins a desenhar. O ódio à Senhora leva-as a libertar toda a animosidade que sentem uma pela outra, conduzindo o jogo de poder muito além de uma mera luta de classes.
“A representação das criadas é metafórica, Genet dizia que para as defender havia os sindicatos. O que importa, aqui, é falar da natureza do teatro enquanto cerimónia, da relação do indivíduo com o poder e dos indivíduos uns com os outros”, clarifica Marco Martins. A encenação despojada cria um espaço irrespirável que suga o espectador para dentro do pensamento mais transgressor. “O castigo é essencial na mente do criminoso. É isso que torna este texto muito negro”, afirma.
A dureza da prestação das atrizes não está isenta de momentos de puro humor negro: “Há alturas em que a perversão e a diabolização é tão grande que não podemos deixar de rir. É quase um riso nervoso, mas é um riso”. Um riso que não antevê qualquer salvação.
O lado ritualístico da encenação de um crime atraiu o também realizador Marco Martins para As Criadas, peça escrita pelo dramaturgo francês Jean Genet, em 1947, quando o próprio autor estava num espaço claustrofóbico: a prisão. A tradução usada nesta encenação é da poetisa Matilde Campilho.
As Criadas > Teatro Nacional D. Maria II > Pç. D. Pedro IV, Lisboa > T. 800 213 250 > 10 nov-18 dez, qua 19h30, qui-sáb 21h30 e dom 16h30 > €6 a €12