Foi à procura de uma vida mais pacata – e doce, diríamos – que Jorge Santos, 30 anos, trocou Londres e a Cornualha, no Reino Unido, para abrir uma cafetaria na Rua do Heroísmo. Aberta há pouco mais de um ano, a Bolinhos do Jorge – assim mesmo porque é ele quem põe a mão na massa – tornou-se conhecida por causa do brownie, que até já teve direito a um dia a ele dedicado: saiu em forma de bolo, com manteiga de amendoim, frutos vermelhos e leite-creme. O empresário lamenta “a falta de dinamização do Bonfim”, por isso, já anda a juntar as lojas vizinhas para as comemorações do Halloween. Na mesma rua, a servir de caminho para a Estação de Campanhã, onde se encontram restaurantes tradicionais como o Cozinha do Manel ou o Xico dos Presuntos, o que mais mexe é o velhinho Centro Comercial Stop, construído na década de 1980, no boom dos shoppings, em que mais de 100 lojas foram transformadas em estúdios de ensaio para músicos. O Stop, contam-nos, até já recebe visitas guiadas de turistas, curiosos com este fenómeno. Haveremos de regressar à noite, altura em que os sons dos instrumentos e das vozes mais se fazem ouvir.
Atravessamos o Museu Militar do Porto – onde, entre outras coleções, se mostra uma quantidade de soldados em miniatura –, o Prado do Repouso, o primeiro cemitério público do Porto (com esculturas de Soares dos Reis e de Zulmiro de Carvalho), rumo à Avenida Rodrigues de Freitas, uma das artérias centrais. Foi para aqui que a designer Madalena Martins, 42 anos, mudou o seu atelier há três anos, quando foi obrigada a sair da zona do Bolhão. A viver na Rua do Bonfim, a poucos passos do trabalho, acabou por juntar o útil ao agradável. “Aqui sinto a identidade da cidade, o que já não sentia na Baixa. Tenho os cafés do costume, o senhor da oficina que me arranja o carro, as frutarias e as drogarias onde vou quando é preciso”, conta. E todos a conhecem. A ela e ao Caramelo, o periquito azul que anda ao ombro de Madalena para todo o lado, seja a pé ou de bicicleta. É neste atelier que a designer tem dado asas à criatividade, desde os candeeiros cabeçudos, de pasta de papel, às andorinhas de pátio desenhadas para o Museu Bordalo Pinheiro, em Lisboa, ou aos cadernos feitos a partir de rótulos da Esporão, numa produção maioritariamente assegurada por reclusos de estabelecimentos prisionais.
Jardins por descobrir
A freguesia apaixonou também as francesas Lea, 24 anos, e Capucine, 33, ao ponto de deixarem Cannes, no Sul de França. “Queríamos mudar de vida. Lá, não consegues andar na rua sem seres abordado por pessoas a pedirem-te dinheiro. No verão de 2017, visitámos Lisboa, depois o Porto e apaixonámo-nos pela cidade. Adoramos as pessoas, os edifícios”, conta Lea, já com umas palavras em português pelo meio. Junto da Biblioteca Municipal e do Jardim de S. Lázaro, onde estava o Almanaque, que vendia revistas e café, abriram o The Happy Nest, uma coffee shop de cozinha saudável, que serve refeições com produtos da época. No dia em que o visitámos, escolhemos o “jardim secreto” das traseiras para almoçar – na sala interior também se está muito bem! – e deliciámo-nos com o menu do dia: tosta de outono com queijo de cabra, figos, mel e pinhão, e bowl mexicano com arroz, frango, feijão, pimentos grelhados e guacamole (€8 cada). Na nova carta vão entrar sopas “leves e saudáveis”, tostas de hummus caseiro e queijo feta, macchiatos de caramelo, avelã ou chocolate, sem esquecer o croissant tipicamente francês. “Aqui, a vida é mais simples, mais segura”, afirma Lea.
Nos jardins da Quinta de Nova Sintra, as folhas já cobrem o chão deste que é o pulmão verde da zona oriental do Porto, com vista para o rio Douro. Reaberto em março, após quase um ano de obras de renovação, é conhecido como o “Jardim das Águas”, por se encontrar junto à empresa municipal Águas do Porto. Quase sempre vazio durante os dias da semana, só os estudantes da vizinha Faculdade de Belas Artes parecem dar-lhe uso, quando para ali vão desenhar. Mas valerá a pena entrar, só para ver a acácia-da-Austrália e a criptoméria-do-Japão, as 15 fontes e chafarizes que antes estavam espalhados por toda a cidade – a mais antiga é a fonte do Ribeirinho, de 1790 – ou ainda a Self-Portrait Fountain, escultura de bronze de Julião Sarmento, que integra o Mapa de Arte Pública do Porto. Os cerca de três hectares deste jardim poderão ser ainda ponto de partida para descobrir o Bonfim, freguesia erguida paredes-meias com a Baixa, onde moram cerca de 30 mil pessoas, entre casas com portas altas de madeira e varandins, e dezenas de “ilhas”.
Tudo bons vizinhos
Pedro Limão também escolheu o Bonfim para abrir, em maio de 2017, o seu restaurante homónimo, na Rua Morgado de Mateus. “Na altura, a Baixa não me interessava, tal como continua a não me interessar”, diz. Em tempos, o chefe de 42 anos viveu na freguesia e isso pesou na decisão: “É um bairro diferente, quer pelas pessoas que o habitam quer pelas que o visitam.” Além disso, gosta da ideia de poder abastecer a cozinha com produtos de lojas locais: como o pão artesanal da Pão Nosso (a padaria e mercearia biológica, na Rua Barão de S. Cosme) ou os samos de bacalhau que compra numa das peixarias de Santo Ildefonso. A dias de mudar o menu, conta que 90% dos clientes são estrangeiros – o restaurante só abre ao jantar, com menu de degustação (€39/sem vinhos). Apesar disso, acredita “que esta zona nunca se vai transformar naquilo em que ficou a Baixa”.
O facto de não ter aberto no centro também não impediu o sucesso do Euskalduna Studio. Bem pelo contrário. Quem queira jantar, num sábado à noite, no restaurante de cozinha criativa de Vasco Coelho Santos, na Rua de Santo Ildefonso, terá de esperar até ao dia 29 de dezembro. Os restantes dias da semana são igualmente concorridos e, conta o chefe, “há quem marque primeiro a mesa e só depois a viagem de avião”. Vasco não tinha ligações afetivas à zona, mas deixou-se conquistar pela vizinhança. O pão caseiro do Euskalduna é cozido num forno emprestado de uma padaria na mesma rua; o peixe de mar (tamboril, peixe-galo, bonito) é comprado na Peixaria do Padrão da D. Marília; e a fruta vem, por vezes, da mercearia mais próxima.
Foi para contar as histórias deste bairro que a ilustradora Joana Estrela, a designer Rita Ferreira e a tradutora Sara Sá Jones se juntaram para fazer um jornal de bairro, com produção assegurada através de crowdfunding. Lá para o final deste mês, há de surgir o terceiro número do Bomfim, com entrevistas e rostos da freguesia, disponível em lojas, cafés e galerias. “Queremos que seja gratuito, para criar um contacto com os moradores.” E embora tenham noção de que “a zona está num processo de mudança”, com o aumento do turismo e a abertura de hostels e guest houses, dizem que o bairro “ainda mantém o espírito de vizinhança e o comércio tradicional”.
A verdadeira “Casa da Música”
Além das exposições na Faculdade de Belas Artes – ou talvez, à boleia da universidade –, várias galerias têm aberto no Bonfim. A última foi a Senhora Presidenta, que junta os ilustradores Dylan Silva, Mariana Malhão e Luís Cepa à designer Célia Esteves, dos tapetes artesanais GUR. Além de ilustração, cerâmica, pintura e fotografia, com assinatura e de edição limitada, querem também organizar workshops e conversas, dizem, que “possam ajudar a tornar o Porto uma cidade mais ativa para lá das paredes do Airbnb”. O mesmo desejam os arquitetos Andreia Garcia e Diogo Aguiar, que transferiram a Galeria de Arquitectura, no Quarteirão de Bombarda, para seis metros quadrados na Rua do Visconde de Bóbeda. “Esta zona tem uma certa movida artística, por isso mudámos”, diz Andreia. Até janeiro, e sempre só através da montra, podemos ver trabalhos do italiano Davide Trabucco sobre a arquitetura portuguesa.
A Garagem, na Rua Ferreira Cardoso, “quer mostrar o trabalho de artistas locais”, desde ilustração e serigrafia a autoedição, música e fanzines. A funcionar, há dois meses, na garagem da casa da harpista espanhola Angélica Salvi, está ainda em fase experimental (abre às quartas e sextas à tarde). A ideia partiu de um grupo de amigos da freguesia, como Ruca Bourbon, artista plástico que trabalha com colagem e assemblage e tem também, há poucos meses, o Atelier Logicofobista (nome do movimento surrealista catalão dos anos 30). Ruca deseja que a zona “não perca a identidade”, com o turismo a tomar conta de algumas “ilhas”. Há menos de um ano, quando a galeria de arte contemporânea Lehmann + Silva abriu na Rua Duque da Terceira, Mário Ferreira da Silva, um dos mentores, dizia à VISÃO Se7e que o Bonfim é “o verdadeiro bairro das artes”. O mesmo terá sentido Nuno Horta que, na mesma altura, inaugurava a NHdesign Gallery, com curadoria de Nuno Sacramento.
Já no atelier da designer espanhola Alba Plaza e da produtora cultural Marisa Ferreira, passam-se duas horas a pintar azulejos, numa mesa repleta de tintas coloridas e pincéis. Além de promoverem esta arte, os workshops da Gazete Azulejos servem também para financiar o arquivo digital de catalogação de azulejos do Porto, que já vai em 250 padrões. A viver em Inglaterra, Tiago Silva, 23 anos, o único português na sala, aproveitou as férias para mostrar à namorada, Samy, os desenhos que se habituou a ver em Canidelo, Vila Nova de Gaia. “Só agora lhes dou outra atenção”, confessa.
Para o Bonfim sempre acorreram várias artes e a música não fica de fora. Ao cair da noite, regressamos ao antigo Centro Comercial Stop, a que todos chamam “a verdadeira Casa da Música do Porto”. Nas lojas, transformadas em estúdios, chegam a estar 700 a 800 músicos dos mais diversos géneros: metal, rock, pop, hip hop, jazz. Um deles é Manel Cruz, que ali ensaia há dez anos. “É o mais próximo da anarquia que conheço. Um fenómeno fantástico. Uma organização espontânea, baseada no trabalho e no respeito”, afirma. À loja 306 vão chegando os 16 músicos da Orquestra de Jazz do Porto que, uma vez por mês, se apresentam no Teatro do Bairro, em Lisboa. “A escolha foi óbvia”, diz o diretor artístico, Filipe Monteiro. No rés do chão, o café de Rui Santos funciona como “cantina dos músicos”. Entre uma tosta mista e um rissol, fala-se de música, trocam-se contactos e pautas. A parede está cheia de assinaturas de músicos de todo o mundo. “Uma vez, veio aqui o guitarrista dos Pink Floyd e eu nem o conheci”, confessa Rui, a sorrir. Um caldeirão de artistas e de histórias – tal como o Bonfim.
ONDE COMER
Bolinhos do Jorge
R. do Heroísmo, 338, Porto > T. 22 494 1826 > ter-sex 8h30-18h30, sáb 9h-14h
Chá das Cinco
Aberto há um ano, é cafetaria e confeitaria, com café artesanal e bolos caseiros.
Pç. da Alegria, 63, Porto > T. 91 641 9826 > ter-sex 10h-19h, sáb-dom 10h30-18h30
Combi Coffee
Cafetaria com café artesanal e, em breve, com uma sala de torrefação à vista.
R. Morgado de Mateus, 29, Porto > T. 92 944 4939 > seg-dom 9h-19h
Cozinha do Manel
Restaurante de cozinha tradicional com forno a lenha, serve pratos de cabrito, vitela, bacalhau, filetes de pescada ou de polvo.
R. do Heroísmo, 215, Porto > T. 22 536 3388 / 91 978 7598 > seg-sáb 12h30-15h, 19h30-22h
Duas de Letra
Restaurante vegetariano e cafetaria.
Passeio de S. Lázaro, 48, Porto > T. 22 536 0333 > seg-qui 10h-22h, qui-sáb 10h-24h, dom 14h-20h
Euskalduna Studio
R. de Santo Ildefonso, 404, Porto > T. 93 533 5301 > qua-sáb 19h-23h
Mesa 325
Cafetaria com refeições ligeiras e café de especialidade.
Av. Camilo, 325, r/c, Porto > seg-sex 8h30–19h, sáb 9h-14h
O Macrobiótico
Restaurante de cozinha macrobiótica.
R. do Bonfim, 63, Porto > 96 424 6130 > seg-sex 10h-20h, sáb 10h-23h
Pão Nosso
Mercearia biológica e padaria de fermentação natural.
Barão de São Cosme, 137, Porto > T. 22 405 9817 > seg-sex 10h-20h, sáb 10h-15h
Pedro Limão
R. Morgado de Mateus, 49, Porto > ter-sáb 20h-24h
The Happy Nest
Av. Rodrigues de Freitas, 293, Porto > T. 22 093 4249 > ter-sex 8h30-17h, sáb-dom 10h-15h (só brunch)
Terraplana
Aberto há dois anos, o bar serve cocktails e pizzas.
Av. Rodrigues de Freitas, 287, Porto > seg-qui, dom 18h-23h45, sex-sáb 18h-3h
COMPRAR/VISITAR
A Garagem
R. Ferreira Cardoso, 16, Porto > T. 93 703 2919 > qua, sex
14h30-19h
Atelier Gazete Azulejos
R. Comandante Rodolfo de Araújo, 162, 2º, Porto > 91 289 1581 > €25/pessoa (inclui materiais)
Casa d’Artes Bonfim
Um edifício art déco, da década de 30, acolhe, desde o início deste ano, projetos ligados às artes.
R. Dr. Carlos Passos, 4 (à Av. Fernão de Magalhães), Porto > T. 22 537 1898
Galeria Porto Oriental
Aberta em 2011, numa antiga casa de 1904, expõe desenho, pintura, escultura, fotografia e instalação de artistas portugueses e estrangeiros.
R. Barros Lima, 851, Porto > T. 22 510 2456 > qui-sáb 15h-19h
Lehmann + Silva
R. Duque de Terceira, 179, Porto > T. 22 016 7341 > qua-sáb 10h30–13h, 15h-19h
NH Design gallery
R. Santos Pousada, 1, Porto
> T. 96 809 6522 > seg-sex 10h-19h
Senhora Presidenta
R. Joaquim Augusto de Aguiar, 65, Porto > ter-sex 14h-19h, sáb 10h-13h, 14h-19h
Centro Comercial Stop
R. do Heroísmo, 333, Porto > seg-dom 10h-24h
Explore Bonfim
Projeto de informação e agenda sobre o Bonfim, do passado até à atualidade.
www.explorebonfim.com
Galeria de Exposições da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto
Av. Rodrigues de Freitas, 265, Porto > T. 22 519 2400 > ter-sáb 14h30-18h30
Galeria de Arquitectura
R. do Visconde de Bóbeda, 99, Porto
Jardim e Mata da Quinta de Nova Sintra
R. Barão de Nova Sintra, Porto > seg-dom 10h-18h > grátis
Museu Militar do Porto
R. do Heroísmo, 329, Porto > T. 22 536 5514 > ter-sex 10h-12h30, 14h-17h, sáb 14h-17h, dom 10h-12h30, 14h-17h > €1