Se há música que assenta como uma luva ao bairro de Alvalade – que sempre conviveu com o som dos aviões a aterrarem e a descolarem do Aeroporto Humberto Delgado, ali a dois passos – é a do grupo português Azeitonas. Pela voz de Miguel Araújo, somos convidados a ir “… ver os aviões, levantar voo, a rasgar as nuvens, rasgar o céu…” Não é, pois, de admirar que só haja aqui um jardim com um miradouro para fazer isso mesmo – um lugar onde estes gigantes do céu passam tão perto que quase os podemos agarrar.
Aberto há cerca de um ano, na Avenida do Brasil, o Jardim e Parque Hortícola Aquilino Ribeiro Machado, com 25 mil metros quadrados, liga Alvalade à Alta de Lisboa, num passeio agradável entre dois pontos lisboetas que se viam separados pela frenética Segunda Circular. Com várias zonas de descanso, equipamento de fitness – de manhã é possível treinar-se à sombra – e talhões com hortas urbanas de ervas aromáticas, couves, girassóis ou melões, esta zona conta com uma vegetação muito particular, composta por áreas de prado e de sequeiro, que seguem o natural ritmo das estações. É verdejante no inverno, florido na primavera e, por esta altura do ano, discreto, em tons de castanho e de verde-seco. Já o sossego, esse bem essencial para uma boa leitura ou uns minutos de contemplação, está presente durante o ano inteiro.
Este jardim é um entre vários pontos de recreio do bairro, alguns escondidos por ruas e pracetas da freguesia de Alvalade. Ainda com poucos dias de uso, do outro lado da Avenida do Brasil foi criado um pequeno parque infantil, para crianças entre os 3 e os 12 anos. Fica junto ao número 120, num dos logradouros recentemente requalificados, com a relva fresquinha e bancos para se fazer uma pausa e se reparar no conjunto de edifícios amarelos do arquiteto Jorge Segurado que nos rodeia. Um bom ponto de partida para um passeio à descoberta das novidades de Alvalade. A freguesia é grande, tem 5,34 quilómetros quadrados, vai da Avenida Almirante Gago Coutinho ao Hospital de Santa Maria, mas é ao eixo entre as avenidas da Igreja, de Roma e Rio de Janeiro que podemos chamar “coração”. É por aqui, pelas ruas perpendiculares e paralelas, com moradores e visitantes de todas as idades, que quase tudo se passa – o bairro de Alvalade está a mudar. Entre restaurantes, lojas, barbearias e floristas, a arte urbana e contemporânea, por exemplo, ganhou destaque, mas também é preciso estar atento às novidades mais escondidas.
Ver, ler, visitar
À semelhança do que está a acontecer em vários pontos da cidade, a arte urbana vem pintando muitas das paredes. Na Avenida Rio de Janeiro, no parque de estacionamento junto ao Mercado de Alvalade Norte, onde residentes e pessoas vindas de outros bairros compram bons peixes e produtos hortícolas, estão dois murais: um em homenagem ao arquiteto Nuno Teotónio Pereira, outro dedicado a José Cardoso Pires. Do outro lado do Campo Grande, no início da Rua Dr. João Soares, junto à esquina com o Campo Grande, está a obra de 20 metros de altura, da autoria de Nuno Saraiva, que assinalou, a 18 de julho, o Dia Internacional Nelson Mandela. E, recentemente, no jardim da Biblioteca dos Coruchéus inaugurou-se um mural em homenagem ao músico João Ribas, referência do punk nacional. Nesta zona, vale também a pena visitar a Quadrum, fundada por Dulce D’Agro, em 1973, galeria que está cada vez menos sozinha na representação das artes em Alvalade.
Desde então, muitas outras se instalaram aqui, a Quadrado Azul, a 111, a Appleton Square ou a Fundação Leal Rios, às quais se juntam agora novas moradas, como a Uma Lulik Contemporary Art Gallery, dirigida por Miguel Rios, e a Artworks. Encontrámo-las, sem qualquer indicação exterior, num pátio escondido na Rua do Centro Cultural. Na porta 2, está a Uma Lulik, local de discussão e de criação de novos públicos para a arte contemporânea, que expõe artistas portugueses mas também representa o trabalho feito em paragens mais longínquas, como a América do Sul, o Médio Oriente e o Sul da Ásia. Já a Artworks, no primeiro andar, abriu recentemente, embora só receba visitas por marcação. “Desenvolvemos este espaço com o objetivo de apresentar os trabalhos que resultam do nosso programa de residências artísticas na Póvoa de Varzim”, explica Diana Menino, coordenadora do projeto em Lisboa. As obras de Rafael Yaluff, de Jérémy Pajeanc e de Tiago Madaleno são as primeiras a sair desta iniciativa, que se chama No Entulho.
Focada em talentos emergentes está também a Balcony, inaugurada há precisamente um ano, na Rua Coronel Bento Roma. Ainda nas artes, mas com uma abrangência diferente, a Bicho Careto apresenta peças de autor nas mais variadas formas, da escultura à arte popular. Carla Correia, a proprietária, mudou-se, em junho, de São Bento para Alvalade. “O bairro é simpático, está a ser revitalizado e em crescimento, e isso nota-se nas pessoas que cá vêm, maioritariamente residentes entre os 30 e os 40 anos, e de vez em quando um ou outro estrangeiro”, justifica.
Quem também se mudou para Alvalade foi a STET, agora vizinha do Clube Atlético de Alvalade, fundado em 1949. A livraria especializada em publicações de fotografia, criada por Filipa Valadares, em 2011, assentou de alma e coração numa loja minimal, cheia de luz, preparada pela arquiteta Filipa Junqueira, mentora do 1:1 (lê-se “um para um” e dedica-se à promoção do design português), companheiro da STET nesta nova morada. “Como muitos outros, tivemos de sair do Bairro Alto. Estivemos temporariamente noutra zona, mas depois encontrei a loja que a Filipa estava a reabilitar e, ao mesmo tempo, senti que havia um movimento de artistas e galerias a deslocarem-se para aqui”, diz Filipa. O 1:1 é uma iniciativa dinâmica e conta com uma agenda intensa, que decorre dentro e fora de portas. Nas últimas semanas, o lançamento do livro do fotógrafo Valter Vinagre e a apresentação das publicações do artista plástico João Penalva foram alguns exemplos.
Na mesma rua, umas portas abaixo, somos surpreendidos pela Legendary Books, um paraíso para os amantes de banda desenhada: “Apostamos na divulgação de autores portugueses e numa agenda regular (lançamentos, workshops, sessões de autógrafos), e fazemos uma coisa que mais ninguém faz – vendemos edições antigas”, explica Margarida Simões que, em sociedade com Pedro Martins, fundou a loja em agosto do ano passado. “E quando dizemos antigas, falamos de publicações, por exemplo, dos anos 30 ou 40, tudo bem conservado, verdadeiros achados.”
Um bairro onde se encontra tudo
O corrupio de carros e de pessoas, que especialmente ao sábado chegam ao bairro vindos de toda a cidade, é resultado da boa fama granjeada. Diz-se que aqui se encontra de tudo e sempre com simpatia: compram-se lãs na Hermínio Dias Correia e Herdeiros, cafés e frutos secos na Casa Mariazinha (classificada como Loja com História), bicicletas na AIRAF, batas e chitas de Alcobaça nos Armazéns do Minho. Mas é das novidades que queremos dar conta, aguçando o apetite para novas visitas. Iniciamos a viagem pelos negócios de família que sempre fizeram parte do comércio do bairro.
É o caso da florista de Fernando Neves e da filha Susana, a N’Flor, que veio ocupar o lugar deixado livre pela Dimop, uma das duas lojas de bicicletas de Alvalade. “O negócio começou há 17 anos em Telheiras, mas foi aqui que viemos abrir uma nova loja para a nossa filha”, explica Fernando. Fresca, como se quer neste ramo, e com uma variedade imensa de flores e de plantas, destaca-se logo pelo exterior. “Vendemos muitas plantas de rua – talvez pelas características do bairro – e as pessoas gostam de ter flores nas varandas; há muitas casas com jardim”, justifica o responsável. Mais à frente, na Avenida da Igreja, a sapataria Skarpa abriu uma nova loja fora de Campo de Ourique, onde nasceu. Pedro Fontes é a segunda geração deste negócio familiar e vê esta expansão como uma evolução natural: “O comércio é semelhante nos dois bairros, e nós fazemos questão de conhecer os clientes pelo nome; é essa ligação que nos distingue.” Também a Gerry Weber, antiga casa Castor, tem a segunda geração aos comandos. Pedro Dias é o responsável português pela primeira loja da marca alemã de vestuário feminino, de portas abertas há apenas uma semana.
Já a loja WareHouse by Maria do Mar, de Mónica Albuquerque, foi pensada para as famílias com crianças. Em 400 metros quadrados, a WareHouse tem disponíveis cerca de 7 800 artigos de puericultura, livros e mobiliário para crianças, dos 2 aos 10 anos, tudo escolhido segundo “uma componente mais pedagógica e criativa no que diz respeito aos brinquedos, à sustentabilidade dos materiais, à diferença e à exclusividade”. Na Keiki, de Alexandra Martins, vestem-se crianças dos 3 meses aos 12 anos, com marcas nacionais e espanholas, como a Play Up e a Plumeti Rain, diferentes no design e nos tecidos.
Ideias de negócio mais curiosas também se instalaram nas ruas de Alvalade. Na Santa Fé, a funcionar desde outubro do ano passado, na Rua José D’Esaguy, o feltro, um dos tecidos mais procurados para o artesanato, é o rei das prateleiras. Lisos ou com estampados originais, como um padrão da Turma da Mónica, aqui encontram-se bons materiais, e ainda se pode aprender a trabalhá-los num dos vários workshops. Chegando à Rua Acácio Paiva, paralela à José D’Esaguy, dá-se logo pela Espalhafato. Pelas montras (era o antigo Talho do Júlio), veem-se as peças antigas e as velharias escolhidas a dedo pelas sócias, Adelaide Soares e Susana Paisana, “todas com alma e história”, afirma Adelaide. O mesmo se passa na Cap ou pas Cap?, de Raquel Costa e de Nuno Santos, especializada em bijuteria de autor: colares, pulseiras, brincos, botões de punho (feitos de teclas de computador) e relógios (a partir de discos rígidos), tudo produzido pela dupla. “Apostámos na diferença, do design aos materiais, que são todos de qualidade”, diz Nuno. Diferente é também o negócio de tatuagens do coletivo Fresh Ink, composto por João, Raquel, Chico e Valentim, um estúdio onde se faz magia na pele, ou a Lisbon’Style Barbershop que, como diz um dos responsáveis, Pedro Rodrigues, “é uma barbearia moderna, onde se usam técnicas tradicionais, seja para cortar o cabelo seja para fazer a barba”.
A que sabe Alvalade?
O cozido à portuguesa dos Courenses, os croquetes do Tico-Tico, os gelados da Conchanata e a sopa de cação do Salsa & Coentros são exemplos emblemáticos da cozinha de Alvalade… até que chegaram novas gastronomias. Agora, há quem venha ao bairro de propósito comer o pad thai (prato picante tailandês) do Soão – Taberna Asiática, as taças de tayo (com vários peixes marinados) do Chirashi, do chefe Miguel Bértolo, e as pizzas e massas do Pasta Non Basta. O italiano, de portas abertas desde fevereiro deste ano, foi um dos últimos restaurantes a chegar a Alvalade. “É um bairro com uma dinâmica cada vez maior, rejuvenescido, que encaixa na perfeição na nossa filosofia”, explica Frederico Seixas, um dos sócios do Pasta Non Basta. A esplanada exterior e a ementa, com propostas genuínas e preparadas com ingredientes de qualidade, marcam a diferença neste italiano.
Mas, em passeio pelas ruas do bairro, encontram-se ainda os congelados para levar ou comer numa das mesas do Dez Prá Uma, os gelados de rolinho da HeyMate, os pães e bolos da Isco, uma nova padaria artesanal que vai dar que falar e, para júbilo dos fãs de pipocas, a Fol Gourmet Popcorn Lisboa. Nesta loja de decoração minimal, as pipocas são feitas de forma artesanal, rebentadas em ar quente e com 12 sabores que vão variando, como os originais pizza, caramelo salgado, maçã verde ou mojito com hortelã – só para abrir o apetite. E agora, a que sabe Alvalade?