Ainda não completou 20 anos de vida, mas fala com um saber de experiência feito. Afinal, Gaspar Varela considera que a sua “carreira” começou aos 8 anos, quando subiu ao palco da Voz do Operário, em Lisboa, para acompanhar, à guitarra, a sua bisavó (a que chama “avó”) Celeste Rodrigues. Frequentou casas de fado anos seguidos, enfrentou palcos sozinho, editou um disco a solo e passou nove meses em digressão com Madonna. Agora, o que o entusiasma é a banda que tem com o irmão, seis anos mais velho, Sebastião, e um amigo comum de infância, Rafael Matos. Os Expresso Transatlântico editam em setembro o seu primeiro álbum, Ressaca Bailada, e têm passado o verão a tocar por aí (estiveram no FMM, em Sines, em Paredes de Coura, e atuam este sábado, 2 de setembro, na Festa do Avante!).
A tua geração já não associa a música a suportes físicos. Alguma vez compraste um CD?
Claro que sim. E tenho a minha coleção de vinil. O primeiro CD que comprei foi para dar de presente de aniversário ao meu irmão: o Cão, dos Ornatos [Violeta]. Lá em casa, sempre tivemos uma grande coleção de CD.
E, já agora, qual foi o último vinil que compraste?
Por acaso, é uma história engraçada. Costumo comprar vinis, sobretudo coisas em segunda mão, mais difíceis de encontrar, a um rapaz, o Toni, que aparece nos fados. Há uns tempos, estava a sair do Bairro Alto com uns amigos, para aí às três da manhã, e encontrei-o a passar no Rossio. Disse-lhe: “Toni! Tens aí alguma coisa?” E ele respondeu: “Por acaso, tenho: Rita Lee.” E comprei-lhe esse disco, ali no meio do Rossio, às três da manhã.
Tens mesmo espírito de colecionador, portanto…
Bom, até agora ainda não juntei uma coleção muito grande.
Ainda vives com os teus pais?
Sim, e eles sofrem com os instrumentos, o equipamento, os amplificadores. A casa não é assim muito grande… Quando digo “vou comprar outra guitarra”, a minha mãe olha para mim e diz: “Não vais comprar nada!” [Risos]
Sempre sonhaste ser músico?
Sim. Tinha muito essa influência lá em casa. A minha avó [a bisavó Celeste Rodrigues] cantava, e eu quis aprender a tocar guitarra para a acompanhar. Desde muito pequenino que mostrei essa vontade. E tenho de agradecer também ao meu irmão, porque os meus pais não tinham possibilidade para estarmos os dois a ter aulas de guitarra portuguesa… Acho que percebeu que eu gostava ainda mais de música, ele é mais virado para o cinema, e quando eu tinha 7 anos, abdicou das aulas de guitarra para eu poder ter. É um gesto em que ainda hoje penso, estou-lhe muito grato. Ele também toca, mas foi aprendendo sozinho, é um autodidata.
Se calhar, também lhe deste umas dicas.
Na guitarra portuguesa, sim, por diversão. Mas ele toca mais guitarra elétrica.
Começaste mesmo muito cedo.
E sinto que tive muita sorte com o professor, o Paulo Parreira. Ele tem paciência e sabe ensinar crianças. Nem toda a gente sabe… Houve uma altura em que também frequentei aulas de guitarra portuguesa no Conservatório e estive quase a desistir do instrumento. Se não fosse o Paulo a insistir comigo, tinha mesmo desistido. Hoje, sinto que das melhores coisas que fiz foi não ter ficado no Conservatório… O método de ensino, lá, é muito virado para um estilo clássico. Além de estarem a formar um músico, deviam estar também, acho eu, a tentar criar um artista. E se, logo de início, começam a pôr barreiras, estão já a apontar para um nicho muito específico.
O ambiente em casa contou sempre muito para essas escolhas?
Sempre tivemos a política de não ter televisão na sala, só nos quartos. A sala é um espaço para conviver, aprender. Fui educado a ter esse convívio, e é uma coisa de que gosto. Também gosto de sair à noite, mas se me derem a escolher, em alternativa, um jantar numa casa com amigos, prefiro isso mil vezes! Primeiro, não corro risco de vida, que é o que está a acontecer em Lisboa, e, sobretudo, estou com os meus amigos, num ambiente de amizade, que é o que mais valorizo.
Chegaste a conviver muito com a tua bisavó?
Claro que sim! Foi mais do que uma avó. Mesmo que eu tocasse muito mal, a minha avó dizia sempre: “Tão bonito. Estás a tocar muito bem, meu querido.” [Risos] Um dos meus maiores sonhos era poder cantar, mas eu canto muito, muito mal. E a minha avó era incapaz de dizer que eu cantava mal; durante cinco anos, dizia sempre que era a minha voz que estava a mudar…
Tinha uma personalidade muito forte.
Foi das pessoas mais incríveis que conheci. Era uma rainha. Quando ela tinha 94 anos, fomos para Nova Iorque, para a festa de fim de ano da Madonna… E estava, sem saber, com uma costela partida. Ela adorava viver, adorava. É a minha maior referência.
E a figura de Amália Rodrigues, que morreu quatro anos antes de teres nascido, era algo muito vivido ou distante e mais abstrato para ti?
Era uma figura muito presente, apesar de não a ter conhecido. É família. O meu pai viveu com a minha tia [Amália]; por isso, sempre ouvi histórias que me dão a saber como ela era, fora de tudo o que se diz e escreve. Lembro-me de que era muito puto e tocava por cima de um CD dela.
O fascínio pelo fado não é nada habitual na infância, mesmo tendo crescido numa família com essa tradição…
Eu fui apresentado ao fado logo desde que nasci. Acho que quem rejeita o fado ainda não o percebeu, não o percebe. O fado é peso da vida. Claro que há ali coisas que uma criança nunca vai entender. Eu fascinava-me com as vozes, as guitarras, aquele ambiente… Não percebia as letras. Felizmente, hoje começo a perceber melhor, mas não era isso que me atraía. A minha escola é o fado. Sinto que o fado carrega muito o peso de uma vida, seja ela feliz ou triste. O fado permite-nos expor aquilo que queremos dizer sobre a vida de uma maneira poética e muito bonita.
E sempre foste sensível a isso?
Sim. Desde muito novo que fui a casas de fado. Ia ter com a minha avó… E foi aí que fui ficando com o bichinho, com vontade de tocar mesmo a sério.
Quando sentes que começaste a tocar mesmo a sério?
Costumo dizer que comecei a carreira com 8 anos. Foi a primeira vez que subi a um palco para tocar com a minha avó, na Voz do Operário. A partir daí, juntava-me muitas vezes a outros músicos, quase todos os fins de semana. Muitas vezes na Mesa de Frades, na Bela…
Se não fosses tocar, nem tinhas idade para entrar.
Claro. Já desde os 7 juntava-me aos guitarristas que estavam a tocar, sem sequer saber um acorde! A minha vida, durante muitos anos, foi fados, casas de fado. E continua a ser… Não vou com tanta regularidade, mas não consigo deixar de ir. A partir dos 13 anos, comecei a subir a palcos sozinho.
Hoje, quem te vai conhecendo como músico não te associa necessariamente ao fado.
Eu sei. E até posso sair do fado, mas o fado nunca vai sair de mim.
É mesmo uma frase à fadista…
Pois é. Sinto que, se for tocar a uma casa de fado, aprendo sempre… O que me dá mais gosto na guitarra portuguesa é explorar o instrumento, usá-lo também noutros géneros musicais que adoro, mas nunca deixando o fado. Já passei um mês sem ir tocar a casas de fado e, quando voltei, senti que tinha desaprendido.
Se tiveres de explicar a alguém que nunca ouviu os Expresso Transatlântico que estilo de música tocam, o que respondes?
Respondo… é Expresso Transatlântico.
Mas essa pessoa está muito curiosa e quer mesmo saber.
Tem de ir ouvir. É a junção de várias coisas… Porquê dar sempre um nome a tudo? Misturamos rock com fado, com música tradicional portuguesa, com música brasileira… É um misto das nossas influências, minhas, do Sebas [o irmão Sebastião Varela] e do Rafael. Não fazemos essa junção de forma totalmente consciente. Juntamo-nos, começamos a compor e o que sair sai…
Os Dead Combo parecem ser uma influência.
Sim, são uma grande influência nossa. Abriram portas para este estilo de música instrumental em Portugal. Foi uma banda que teve um sucesso incrível, que teve de lutar muito para nós, agora, e outras bandas, podermos aproveitar esse caminho aberto. Musicalmente, são uma referência que sempre me acompanhou. Até toquei com eles no Elétrico [programa da RTP, gravado no Capitólio]… Quando era puto, o meu pai mandou um vídeo ao Tó Trips [um dos fundadores dos Dead Combo, com Pedro Gonçalves] comigo a tocar os Verdes Anos [de Carlos Paredes] na guitarra elétrica e a imitá-lo, aquela postura toda, a bater na guitarra… O Pedro e o Tó são duas referências gigantes para nós.
Sentes que também há fado na música dos Expresso Transatlântico?
Sinto. Há uma certa nostalgia em algumas músicas, uma maneira de nos expressarmos muito própria, que também vem do fado. Tem de ter fado, porque é uma grande referência minha e do Sebas. E o Rafael, nosso amigo desde crianças, quase um irmão, foi muitas vezes ao fado connosco. A nossa música é um misto do que somos, do que nos compõe enquanto artistas.
Tens algum gosto, nota-se, em te libertares, em palco, do uso mais tradicional e fadista da guitarra portuguesa…
Ligar a guitarra a pedais, por exemplo. Um pioneiro nisso foi o Luís Varatojo, n’A Naifa e no Fandango. Também foi uma referência para mim, fez-me perceber “uau, a guitarra portuguesa dá para explorar a este nível!”.
Estás no percurso que sonhaste, de ser músico profissional. Como te vês daqui a uns anos? Mais próximo do fado, do rock, de cenas mais experimentais?
Espero ser sempre sincero comigo e com a minha arte. É isso que quero para o meu futuro. Agora, estou muito feliz com o Expresso Transatlântico, que expressa bem o que sou. Gostamos muito do que estamos a fazer. As músicas são sempre dos três, compomos mesmo em conjunto, com total liberdade. Nesse sentido, também é um bocadinho punk, e curto bué isso. Isso é que é arte!
Se tudo fosse possível, com que músico gostavas de partilhar um palco?
Morto ou vivo? Se estamos a falar de sonhos, diria David Bowie. Mas se for dos vivos… Ah, já toquei com ele. Mas gostava de voltar a tocar com o Yerai Cortés, um guitarrista espanhol de flamenco muito bom, que também gosta de misturar a guitarra dele com outras cenas. Fiz uma residência com ele em Mértola, no festival Futurama. Entendemo-nos muito bem, adorei.
Não há muitos músicos que possam dizer, como tu, que andaram em digressão com a Madonna. Foram quantos concertos?
Foram nove meses de tour… Comecei com 15 anos e fiz 16, entretanto. Fazer 16 anos numa digressão da Madonna é do caraças!
O que sentes que aprendeste com essa experiência?
Enquanto músico, aprendi uma disciplina que nunca tinha tido, uma escola a que não estava nada habituado. Enquanto artista, foi uma grande viragem, em que percebi como há tanta coisa para fazer! Abriu-me a cabeça para patamares que eu nem imaginava.
Nunca te aterrorizou essa ideia de ir em digressão com a Madonna?
Nada. Era puto… Adorei aquilo! Começámos com 17 concertos em Nova Iorque, ficámos lá três mesinhos. Foram seis meses na América e três na Europa.
Eras o mais novo da equipa, certo?
Sim, mas ela também tinha lá os filhos, que às vezes entravam em palco para fazer um número. Agradeço mesmo ter tido essa experiência. E fiquei com um enorme respeito pela Madonna. É uma patroa. Tinha 61 anos quando começou aquela tour, decidiu ir para teatros, tirar o acesso do público a telemóveis e fazer um espetáculo que era, do princípio ao fim, uma crítica social. Respeito muito isso. Abria os espetáculos a questionar como é que miúdos podem comprar armas na América…
Como é que tudo começou?
Ela quis ir aos fados cá em Lisboa e foi ouvir a minha avó cantar. Adorou, mas, quando eu toquei nessa noite, ela já tinha saído. Depois, combinou com a minha avó ir ouvi-la outra vez e, nessa noite, conheceu-me, na Mesa de Frades. Pelos vistos, curtiu bué de mim e convidou-me a mim e à minha avó para ir passar o ano, de 2017 para 2018, a Nova Iorque. Fui eu, a minha avó e os meus pais – o Sebastião não quis ir. Depois, fomo-nos encontrando mais umas vezes em Lisboa. Um dia, também na Mesa, perguntou-me se eu não gostaria de ter tido uma voz no meu primeiro álbum a solo. E, a seguir, disse: “Não queres vir em tour comigo?” Achei que estava a brincar, claro, e respondi qualquer coisa como: “Yá, deixa-me só consultar aqui a minha agenda…” O filho dela, ao lado, é que me disse: “Olha que ela está a falar a sério…”
Suspendeste as aulas?
Estava numa escola profissional, a EPI. No último ano, teria de fazer um estágio… Assim, o meu ano de tour contou logo como estágio; ficou feito, e quando voltei, fiz o 11º e o 12º.
Que grande estágio…
Sim, fui avaliado pela Live Nation e pelo Kevin Antunes, que era o diretor e produtor musical da Madonna!