Soledad Alegre é o nome revelador da protagonista de A Carne: uma mulher atraente, couraçada nas linhas puras de Miyake, Yamamoto e Jill Sander, uma criatura inteligente apoiada num reconhecimento profissional e com voracidade sexual sempre despertada por homens bonitos, curadora de exposições a braços com um projeto sobre escritores malditos (“Se ao menos fosse um pouco mais corajosa e se atrevesse a escrever um livro…”) − e a cumprir 60 anos.
A narrativa dispara com uma vingança: a da exibição de um jovem gigolô contratado, de peito depilado e “esticado como um tambor”, numa noite na ópera, cenário wagneriano para a bofetada de luva branca que quer oferecer ao ex-amante que a trocou pela jovem esposa ornada com barriga prenunciadora de bebé. Seiscentos euros gastos numa vaidosa prova vitalista. Mas um assalto introduzirá o prostituto Adam, outro nome simbólico, no círculo fechado da sua cama. Este é um primeiro homem do resto da sua vida, que Soledad poderia contabilizar nessas primeiras linhas do livro: “A vida é um pequeno espaço de luz entre duas nostalgias. A nostalgia do que ainda não vivemos e a do que já não poderemos viver.”
Armada de hipocondria (há duas páginas hilariantes sobre a bagagem “ridícula” de “truques, cremes e ortopedias” usadas para combater a deterioração do corpo) e lucidez, Soledad enfrenta o envelhecimento nas traiçoeiras pregas do corpo, mas também na tirania do mundo acasalado em pares, na guerra grisalha perpetrada pelos jovens que a transformam em personagem secundária, na enunciação de um tempo de últimas vezes – a última vez em que se dança, que se mergulha no mar, enfim, a emboscada da morte. Uma narrativa lapidada pela escrita desenfadada, perspicaz e humorada de Rosa Montero, que vestirá esta paixão carnal com suspense, filosofia, remoques à crise, à burguesia instalada e ao subtexto dos desfavorecidos. Tudo com assombrosa clarividência
A Carne (Porto Editora, 192 págs., €16,60) usa as características ferramentas da autora, o tempero da narrativa com alguns ingredientes autobiográficos e referências literárias