Um dia, Yeong-hye deixa de comer carne. O marido encontra-a acocorada, a esvaziar caixas de carne de vaca para o shabu-shabu e enguia fatiada, arrancadas às profundezas do frigorífico, e a enfiá-las no lixo. Uma desconhecida, a mesma mulher em quem Cheong sempre pensou como “alguém que não tinha rigorosamente nada de especial”: altura mediana, cabelo nem curto nem comprido, ar tímido e frágil, vulgares sapatos pretos. Nem atraente nem repulsiva, ponderou, “não havia motivo para que não nos casássemos.” Esta normalidade medíocre, tépida, de rebanho empurrado para o matadouro dos sonhos (reflexo da pretensa submissão social asiática, lerão alguns), será abalada pelo abandono da carne ingerida – e, depois, chegará o abandono da carne do seu próprio corpo. Mas estamos longíssimo de libelos simplistas em prol dos direitos dos animais, de narrativas sociológicas ou sobre pseudo modas alimentares. Han Kang escreveu uma fábula negra, perturbadora – começa sossegadamente, engrena numa espiral avassaladora.
A decisão de Yeong-hye de se tornar vegetariana, e que desmorona a ordem familiar, é contada através de três olhares: o marido egoísta; o cunhado, artista falhado que desenvolve uma obsessão pelo seu corpo em mutação; a irmã, In-hye, que, por abnegação perdeu a sua vida, e tenta resgatá-la à desistência da comida. É que Yeong-hye aspirará a ser árvore, a alimentar-se de sol – estranha parábola ecológica e lírica. “Sentimos” o seu corpo a murchar como que através de uma lente magnificadora: pele, músculos, flores que o cobrem a certa altura, tudo é hiper-realista. E tudo porque Yeong-hye “teve um sonho”, frase que ressoa outra voz ligada aos direitos civis dos negros americanos. É com surpresa que descobrimos que este romance se transfigura numa história sobre o direito ao corpo, sobre a violência que os outros sobre este exercem (o pai, herói do Vietname, forçá-la-á a comer…), sobre a dignidade da morte.
A Vegetariana (D. Quixote, 192 págs., €14,90) venceu, este ano, o Man Booker International Prize, em cuja lista de seis finalistas estavam obras de Elena Ferrante, Orhan Pamuk e José Eduardo Agualusa