Acredita o escritor argentino Alberto Manguel que só na má literatura é que as personagens não comem. O autor do Livro de Receitas dos Lugares Imaginários não precisou de chegar aos 73 anos para retirar essa conclusão das suas muitas leituras. Os livros sempre lhe trouxeram comida, como daquela vez em que era ainda um miúdo, leu a palavra “jelly” numa aventura escrita por Enid Blyton e ficou a sonhar com um prato paradisíaco.
Servem estas linhas para me sentir acompanhada numa confissão: sempre que penso em viajar, começo por aquilo que vou poder comer. Mais do que listas de igrejas, museus ou jardins imperdíveis, recolho dicas de restaurantes e pratos. E se o hábito vem de um pai-escritor que alinhava pelo mesmo diapasão de Manguel, o aval do argentino que lia em voz alta para Jorge Luis Borges ajuda a mitigar o meu sentimento de culpa judaico-cristã.
Portanto, caros leitores, assumo que foi imbuída do pecado da gula que me enfiei num avião que aterrou em Valência ao fim de duas horas e picos. E na minha lista mental lá estavam os arroces, em paella e, ainda melhor!, do nero e com camarões, mais os igualmente típicos fartons mergulhados numa orxata. [Parêntesis para escrever que os fartons são umas tiras gulosas de pão açucarado que casam bem com aquela bebida feita à base de chufa, pequeno tubérculo de sabor adocicado].
Escreva-se também que a sorte e o engenho fizeram com que ficasse hospedada defronte do pequeno Mercado Municipal de Mossén Sorell, no bairro del Carmen. Sabia que tinha escolhido acordar na chamada Cidade Velha e numa espécie de Bairro Alto local, mas só ao final do dia iria provar o foie mi-cuit que a chefe Lydia Palomar serve no Vinostrum, a bodega gourmet onde o pai, Luis, aconselha os vinhos.
Na minha lista mental lá estavam os arroces, em paella e, ainda melhor!, do nero e com camarões, mais os igualmente típicos fartons mergulhados numa orxata
O dia já começara com prazeres de boca no Cafe Restaurante L’Express, que tem morada no início da Praça Mossén Sorell e que, na prática, acaba por ser no Carrer de la Corona. Em português, sabem os mais avisados que corona se traduz por coroa, mas a piadinha pandémica faz-se fácil frente a uma torrada amb tomaca mais cafè amb llet, um pequeno-almoço (aqui grafado em valenciano) bom para ganhar energia. Eram 11 horas e o que restava da manhã iria ser passado a percorrer a pé parte do “rio”, a caminho da Cidade das Artes e das Ciências.
Já lera que é assim que as gentes de Valência chamam aos Jardins do Turia, o lindíssimo parque de nove quilómetros em que foi transformado o antigo leito do rio Turia. O que não aparecera na pesquisa na internet é que essas mesmas gentes têm a cultura do almuerzo, cultivada com empenho entre as 10 e as 12 horas. O almoço de faca e garfo só acontece pelas duas da tarde, haviam de explicar os funcionários do vizinho Museu da Pré-História que se tinham sentado na mesa ao lado no L’Express, a despachar pedaços de tortilha de batata acompanhados de cervejas.

Estava dado o mote para esta escapada a Valência, três dias inteiros que iriam chegar para comer muito bem e perceber que a visita dá direito a várias cidades numa só. Bastou logo na primeira manhã atravessar o centro histórico em direção à Ciutat de les Arts i les Ciències, desenhada por Santiago Calatrava e Félix Candela, para a cidade gótica dar lugar à cidade futurista, a predileta das famílias com crianças muito por causa do Hemisfèric (com filmes de cinema Imax) e do Oceanogràfic (o maior aquário da Europa). Nos dias seguintes, iria conhecer a cidade-que-podia-ser-Madrid, graças à sua arquitetura modernista dos anos 1920, e ainda a cidade-para-sair-à-noite e a cidade-praia. Haja pés para andar ou pernas para bicicletar.
Se na Ciutat Vella vale a pena entrar no IVAM (Institut Valencià d’Art Modern) e, em havendo fôlego para os seus 207 degraus, subir ao Miguelete (ao lado da catedral), na categoria imperdível estão a Llotja de la Seda e o Mercado Central. A primeira é a antiga bolsa dos mercadores de Valência, que ficou pronta em meados do século XVI e hoje espanta pelo teto de uma das salas e pelos reflexos de uns vitrais no jardim. O segundo merece umas horas de visita e todo o próximo parágrafo.
Inaugurado em 1928, o gigantesco Mercado Central é por estes dias frequentado tanto pelos habitantes de Valência como pelos turistas. Mal se entra, percebe-se logo porquê. Tem de tudo como na botica – e em bom e verdadeiro – com a vantagem, para o forasteiro, de não ser preciso ser-se dono de uma cozinha em Valência para provar algumas das iguarias. Se já não se for a tempo de arranjar lugar na barra do Central Bar, do chefe valenciano Ricard Camarena, é possível comprar e degustar umas ostras na zona da peixaria. Caso seja ainda cedo para almuerzos ou almoços, há sumo de laranja acabado de espremer, em várias bancas. E, claro, muitos produtos bons para levar na mala.
Inaugurado em 1928, o gigantesco Mercado Central é por estes dias frequentado tanto pelos habitantes de Valência como pelos turistas
Num outro mercado, o Mercado de Colón, ficam mais dois dos restaurantes desse mesmo chefe com duas Estrelas Michelin: o Habitual e o novíssimo Bar X (abriu no final de novembro). Mais barato do que o primeiro, o segundo tem uma cozinha aberta do meio-dia à meia-noite e petiscos tão bons que valem a espera (não aceita reservas). Em decidindo jantar a horas espanholas, dá para seguir diretamente para as noites – que foi o que fizemos.
Sim, caros leitores, usei o plural e não é majestático. Éramos quatro grandes amigas de passeio por Valência, o que tornou tudo mais interessante. Não vou puxar pela lágrima, mas aproveito para acrescentar que as “noites” em grupo são sempre potencialmente divertidas e que elas podem começar num bar do bairro del Carmen ou, mais devagarinho, no teatral Cafe de las Horas, a beber Água de Valência.
Depois de uns copos desse cocktail típico valenciano (ver a receita na caixa amarela), parta-se, então, rumo a Ruzafa, o bairro hipster da cidade, onde basta uma pessoa estar atenta às filas à porta de prédios para dar por discotecas como a Bowie. Pode um sítio cheirar a mofo mas ter música boa para dançar e bailarinos de lamé que nos entretêm até de manhã?
Não me lembro de termos falado sobre isso no dia seguinte. No programa havia uma paella na praia de Malvarrosa, o Mediterrâneo, calmo, a reconciliar-nos com a ideia do regresso à vidinha. No antetítulo destas páginas está escrito “Escapar”, e foi isso mesmo que fizemos em Valência.
O cocktail Água de Valência foi inventado em 1959, na Cerveceria Madrid. Habitualmente, faz-se para partilhar. Para se preparar 1,5l, é preciso 500 ml de sumo de laranja, 500 ml de cava (espumante), 250 ml de gin, 250 ml de vodka, meia laranja, cubos de gelo. Misturam-se os líquidos e deixa-se a repousar por 1 a 2 horas no frigorífico. No momento de servir, junta-se o gelo.