“Quando não sabem o que pedir, as pessoas escolhem sempre tikka masala ou butter chicken”, comenta Hamir Balu, dono e fundador do Haweli Tandoori, na Graça. Di-lo com um certo ar conformado de quem já viu, serviu e cozinhou muito. Da primeira fila, assistiu a todas as mudanças do bairro lisboeta – “quando abri, em 1991, era o único desta rua” –, notou novos hábitos alimentares – “há cada vez mais vegetarianos” – e continuou, firme, a servir um menu com diferentes influências, fruto da sua itinerância pessoal.
Neto de avó indiana, nasceu e cresceu em Ressano Garcia, Moçambique, e voou sozinho, aos 16 anos, para Portugal (ano de 1976). Estudou em Lisboa e trabalhou na Grécia e em Inglaterra, onde teve as primeiras experiências de restauração. No início dos anos 90, fundou a própria casa, uma das primeiras a usar o tandoori, um forno de barro com o formato de uma ânfora, para confecionar frango ou borrego ou os populares nans. “Abri eu e, pela mesma altura, também outra casa no Campo Grande, que já fechou. Mas agora há muitas mais”, conta.
Na carta juntou os pratos que aprendeu a cozinhar, sobretudo em Londres, “porque em Moçambique não havia este tipo de cozinha”, e que são o reflexo, diz, “de uma cozinha mais do Norte da Índia, apesar de haver tandoori em todo o país”. Adicionou-lhe algumas influências goesas, com as quais cresceu em Moçambique, como o sarapatel, o vindaloo ou o frango à goesa, e ainda um especial do seu país natal, “muito suave e famoso aqui”, o camarão com molho de amendoim, feito com molho de coco e também servido na versão de frango ou borrego. Para estômagos mais fortes, sugere um frango jalfrezi, com molho à base de malaguetas. Vale sempre a pena olhar para esta e outras ementas dos restaurantes indianos, em Lisboa, e viajar, para lá dos clássicos de conforto.
Explica à VISÃO Hambir Balu, e confirma-se facilmente com algumas fontes fidedignas, que o tikka masala foi inventado na Escócia por um chefe bengali, depois famoso em todo o Reino Unido, e está ligado na génese a um prato da Índia, igualmente popular no Ocidente, o butter chicken. Ricardo Dias Felner, jornalista e crítico gastronómico, explica que esta é uma receita “criada num restaurante em Nova Deli e que se tornou uma opção mais turística hoje.”
Sobre o advento dos restaurantes indianos em Lisboa (e em Portugal), esclarece que surge por diferentes vias. “Uma grande vaga vem de Inglaterra, de indianos de segunda ou terceira geração, já nascidos na Europa; depois há a via de Moçambique, que tem uma comunidade de imigrantes indianos, há décadas, que chegou a Portugal depois do 25 de Abril, com origem em diferentes regiões da Índia.”
Desta herança, alguns criaram restaurantes indianos convencionais, outros servem culinária goesa ou indo-portuguesa – “para mim”, diz o jornalista, “uma das mais interessantes cozinhas de Lisboa”. Mesmo em toda a Índia, as cozinhas são diferentes entre si. “O Sul é mais suave, mais tropical, tem mais peixe, vê-se marisco; o Norte, em contraste, tem uma cozinha mais forte, por regra mais picante”, refere. E acrescenta: “É comum os indianos dizerem que alguns pratos não são picantes, mas, mesmo o nível médio deles, é muito forte para nós.”
PALAVRA DE ORDEM: EXPERIMENTAR
Nas traseiras da Avenida de Roma, mora, desde 2019, o Masala Kraft, um indiano que assume a tradição de diferentes regiões. É o projeto de dois irmãos, Deep e Purvi Radia, ele de 26 anos, ela de 32, filhos de pais indianos, naturais de uma vila pequena no centro da Índia, já nascidos em Lisboa. E aqui apostam em oferecer algumas especialidades alternativas – tome nota: estão sublinhadas a amarelo no menu. É o caso de quatro receitas indo-chinesas, cujos pratos “se comem também muito na Índia”, explica Deep, em referência, por exemplo, ao prawn manchurian, camarões salteados com molho de soja, ou ao chilli chicken, um frango frito com tomate, pimento e cebola, também com molho de soja. “Os chineses usam especiarias semelhantes às nossas, mas na cozinha indiana elas são logo cozinhadas nos refogados e o sabor fica todo no prato; na China, colocam-se mais para finalizar as receitas.”
Na cozinha está um nepalês, que fez as primeiras provas do restaurante em casa da família Radia, antes de ser contratado para abrir o Masala Kraft. “Temos muitos pratos vegetarianos, os meus pais são vegetarianos, e a fonte principal de proteína são as lentilhas. Há muitos sítios na Índia onde não se comem animais”, comenta. Servem, por exemplo, um tadka dal, uma mistura de lentilhas amarelas, finalizada com um óleo aromatizado a ferver, que leva ainda especiarias e ghee (manteiga clarificada), um roti, o autêntico pão indiano feito com farinha integral, ou ainda um laccha paratha, várias camadas de pão indiano também de farinha integral. Mais comuns, mas muitíssimo bem-feitos, e com fama no bairro, são os paneer pakora, pastéis de queijo fritos com molho de menta. “Temos também alguns pratos do Punjabi [a norte da Índia, que apanha também o Paquistão], como os vindaloos, uma comida mais pesada”, refere.
No Costa do Malabar, em Arroios, prova-se um prato indiano também com fama mundial: masala dosa, um crepe à base de farinha de arroz e lentilhas, recheado com um puré de batata, temperado com masala de especiarias. “Há uns anos, o The Huffington Post escreveu que é um dos dez pratos que se tem de provar uma vez na vida”, esclarece Simi Pannian, a engenheira de software que abriu o restaurante, em 2016, com o marido, Sumilkumar Bhaskaran, e que tem neste prato uma das estrelas da companhia. Mas não vem só. Há também outras especialidades, como o meen pollichathu, um peixe grelhado em folhas de bananeira; o appam chicken stew, uma panqueca à base de farinha fermentada de arroz e leite de coco, servida com caril de frango cozinhado em leite de coco; a rasam, uma sopa tradicional do Sul da Índia, feita com sumo de tamarindo, tomate, pimenta, cominhos e outras especiarias, ou ainda o idli sambar, uns bolinhos a vapor, também de farinha fermentada de arroz e lentilhas, servidos com sambar, um caril de legumes e de lentilhas cozido num sumo de tamarindo temperado com assafétida, “muito boa para a digestão”, diz Sunil.
A ementa presta homenagem à chamada Costa do Malabar, zona litoral do Sudoeste Indiano, onde há mais tradição de se cozinhar peixe. “Tenho ideia de que os portugueses também potenciaram a pesca na Índia”, diz Simi, a par de outras culturas e trocas intercontinentais – é o caso do tomate e da batata –, entretanto adotadas e disseminadas pela Índia.
A conversa com Sunil e Simi é uma verdadeira aula de gastronomia indiana, com direito a prova olfativa e tudo. Para a mesa trazem chalotas de Bombaim, tamarindos desidratados (usados no caril de peixe, por exemplo) que vêm de Kerala, cidade onde Sunil nasceu, folhas de caril frescas, estas últimas a servir para fazer a pasta de caril, em que são adicionados coco e tamarindo, também. “Trazemos 90% das especiarias da Índia, mas fazemos aqui as nossas misturas e temperos”, explica Sunil.
Para Harneet Baweja, fundador do Gunpowder, no Chiado, “as especiarias usadas em cada prato têm um propósito. A cozinha indiana é quase científica. As ervas ou raízes devem ajudar a curar o corpo. A curcuma, por exemplo, é antibacteriana, anti-inflamatória. A papaia verde usa-se muito com carnes. Se são animais que tiveram uma vida cheia, ela ajuda a quebrar alguma rijeza”.
Dizer que a cozinha indiana é sinónimo de caril é tão errado… ou que as especiarias significam picante. A cozinha indiana é muito mais rica
harneet baweja, fundador do gunpowder
Quando abriu o restaurante, no final de 2022, quis trazer os sabores tradicionais da Índia, cozinhá-los com os produtos locais, num espaço a transpirar modernidade. “O mundo conhece apenas três pratos indianos. Dizer que a cozinha indiana é sinónimo de caril é tão errado… ou que as especiarias significam picante. A cozinha indiana é muito mais rica”, manifesta Harneet. Se os portugueses levaram as especiarias ao mundo, “quero que agora provem coisas diferentes”, diz.
Por isso, quando decidiu abrir uma extensão do londrino Gunpowder em Lisboa, desenhou uma ementa variada, com pratos que têm norte e sul, comida caseira ou mais sofisticada. Dela fazem parte especialidades como o pato chettinad com oothappam, um crepe de farinha de arroz recheado com estufado de pato, servido com pickle de cenoura, a tosta de Camarão CPC (homenagem ao Clube em que Harneet ia com o pai em criança) ou corvina com molho coorgi, com o filete de corvina marinado e grelhado servido sobre caril de coentros. “Há tantos sabores bons e diversos para mostrar que mudamos o menu constantemente”, remata Harneet.
A FUSÃO COM GOA
São já conhecidas as influências portuguesas na cozinha goesa, um leva-e-traz com mais de 500 anos de História, definida por Ricardo Dias Felner como uma “fusão antiquíssima, super-regional, com elementos goeses e portugueses”. E que antes de voltar a Portugal ganhou ainda alguns pós moçambicanos, por intermédio de goeses que ali se instalaram. “A comida indo-portuguesa de Lisboa já é diferente da que se come em Goa”, diz Ricardo.
Maria dos Anjos, a icónica mulher que comanda o Tentações de Goa há 28 anos, corrobora a ideia: “Lá, a gastronomia hoje já é mais adaptada ao turismo, encontra-se pouco esta comida mais tradicional.”
Foi através do marido, moçambicano de origem goesa, que se atirou para este negócio de abrir uma tasquinha castiça no coração da Mouraria, onde serve alguns pratos que replicam esse caminho Portugal-Goa-Portugal. “O vindalho de porco – não confundir com vindaloo, são coisas diferentes –, uma adaptação da vinha-d’alhos, o sarapatel, também tem origem num prato alentejano.” A sua receita inclui diferentes partes do porco (fígado, língua, orelha, entremeada), cozidos, cortados em pequenos pedaços, fritos em óleo, depois temperados com tamarinho, gengibre, cominhos, cravinho, entre outras especiarias.
Maria dos Anjos fala sobretudo de uma gastronomia mais elaborada, demorada na confeção, que ganha em ser deixada a apurar de um dia para o outro. “O meu chacuti leva um molho de 14 especiarias, tostadas e trituradas”, dá como exemplo. Costuma abastecer-se de produtos e temperos na Mouraria, mas nas viagens que fazia a Goa, ao longo dos anos (hoje menos frequentes), comprava camarão seco (pequenino), usado no molho do balchão, cardamomo preto ou solans de brindão, “um primo do mangustão, compra-se a casca para dar acidez aos pratos de peixe”, conta. Tem no chouriço à goesa o seu prato mais picante e diz que muitos clientes lhe pedem para não o usar. “Pedem-me caril sem picante, mas eu não o faço, sigo a receita original.” E ainda bem.
RESTAURANTES
Haweli Tandoori > Tv. do Monte, 14 > T. 21 886 7713 > seg-sáb 12h-15h, 18h-22h30
Masala Kraft > R. Dr. Gama Barros, 15 B > T. 21 589 6758 >f seg-dom 12h30-15h, 19h30-23h
Costa do Malabar > R. Rosa Damasceno, 6A > T. 96 767 3230 > seg-dom 12h-15h, 19h-23h
Gunpowder > R. Nova da Trindade, 13 A > T. 21 822 7470 > seg-dom 12h-16h, 19h-24h
Tentações de Goa > R. de São Pedro Mártir, 23 > T. 21 887 5824 > seg 19h-22h, ter-sáb 12h-15h, 19h-22h
OUTRAS MORADAS
Caxemira > Acaba de festejar os 37 anos numa nova morada, no Intendente, além de ter uma extensão no Parque das Nações. Continua a ser um dos indianos melhores de Lisboa. R. Antero de Quental, 3 > T. 21 886 5486 > seg-sáb 12h-15h, 18h30-22h
Cantinho da Paz > Um porto seguro para quem procura, em Lisboa, comida goesa autêntica, com destaque para o caril de gambas e o chacuti de cabrito. R. da Paz, 4 > T. 96 5014 667 > ter-sáb 12h30-15h, 19h-22h (sex e sáb até 22h30)
Natraj Tandoori > Para comer pratos feitos no tandoori e outras especialidades como os vários caris à base de peixe. R. do Sol ao Rato, 50 > T. 21 388 0630 > seg-dom 12h-15h, 19h-23h30