Os preparativos para o jantar ainda não começaram, por isso aproveitamos para apreciar os últimos raios de sol e a beleza do rio Tejo. Estamos no Feitoria, o restaurante com uma Estrela Michelin do Hotel Altis, em Belém, e, vindo da cozinha, João Rodrigues chega à sala com um dos pratos do menu vegetariano. Chama-lhe tutano vegetal (o nome é uma brincadeira) e tem como ingrediente principal os brócolos. “São envelhecidos durante três semanas, um processo que concentra todo o sabor”, explica o chefe de cozinha. “Em seguida, são grelhados e levados ao forno com uma manteiga noisette. Por fim, o brócolo é aberto e marcado, acompanhado com uma muamba de ginguba (uma espécie de amendoim).” Dito assim, parece simples, mas a receita demorou a apurar.
No Feitoria, os vegetais são tratados como uma proteína animal e trabalhados com diferentes técnicas: na grelha, fermentados, em pickles e até cozinhados ao sal. “Os legumes eram vistos como um acompanhamento e servidos, sistematicamente, demasiado cozinhados, espapaçados e sem cor.” Hoje, ganham lugar de destaque na mesa. “Apesar de já ser considerada uma tendência ao nível global, por cá ainda estamos a dar os primeiros passos”, reconhece João Rodrigues.
O restaurante tem um menu vegetariano desde 2016. Antes disso, se chegava à cozinha um pedido especial, o serviço normal via-se afetado, admite João Rodrigues. “Tínhamos de improvisar na hora e preparar alguma coisa com as guarnições pensadas para outros pratos. Depressa percebemos que devíamos dar a mesma atenção e carinho a estes clientes.” Foi já à mesa que saboreámos o Menu Caminho que, além da versão vegetariana (de sete ou nove momentos, €100 e €120, sem vinhos), tem também uma versão vegana e outra com carne e peixe. A regra é sempre a mesma: proximidade, respeito pela sazonalidade, aproveitando ao máximo cada produto. Aliás, foi neste sentido que surgiu o projeto Matéria de que João Rodrigues é mentor e que tem como objetivo promover os produtores nacionais com boas práticas agrícolas e a produção animal, em respeito pela Natureza e pelo ambiente. Na memória, levamos as cores (e o sabor!) das cenouras com cominhos e miso; a beringela agebitashi, dashi e ervilhas-lágrima, com um toque oriental, e o arroz carolino de salicórnia queimada e microalgas, qual “mergulho” nos sabores do mar.
Ljubomir Stanisic confessa que, durante muito tempo, detestava receber clientes vegetarianos no seu restaurante 100 Maneiras, no Bairro Alto. Mas, diz, mudou de perspetiva quando, em 2016, assumiu o papel de chefe-consultor no Six Senses Douro Valley, na zona de Lamego, onde praticava uma cozinha “muito centrada no bem-estar e na sustentabilidade”. “Influenciou-me muitíssimo e mudou completamente a minha forma de olhar para os legumes. Hoje, os vegetais são provavelmente aquilo que mais prazer me dá a cozinhar e transformar.” Mais do que estar perto dos produtores, Ljubomir tornou-se, ele próprio, produtor – no seu monte na região de Grândola, tem uma generosa horta. É um trabalho duro, foi percebendo, mas que também lhe ensinou a valorizar o prazer de colher algo que se planta e se cuida, meses a fio. “Ganha-se um respeito diferente pelo produto.” No menu vegetariano do 100 Maneiras, o Ecos do 100 (€125, sem bebidas), disponível desde a reabertura do restaurante em 2019, são servidas adaptações do menu A História, no qual o chefe de cozinha conta o seu percurso. É o caso do prato De Perder a Cabeça, na versão veggie, feito com cabeça de aipo fumado, rábano, kupus e tortilha de milho e algas, ou d’ Orient Express, um pickle de chalota com baba ganoush e papadum (um tipo de pão crocante indiano). “Queremos que todos possam surpreender-se com a versatilidade dos vegetais, que podem criar pratos tão ou mais saborosos e interessantes do que os que têm proteína animal”, sublinha Ljubomir.
Sair satisfeito
No Porto, Pedro Lemos – que desde 2018 serve um menu vegetariano (8 momentos, €120) no seu restaurante homónimo na Foz Velha – partilha da mesma opinião. “A cozinha nasce dos vegetais. Sem bons legumes, ninguém consegue fazer um bom caldo.” A carta é baseada no que a terra dá: os vegetais, as raízes, as ervas, as leguminosas. “Tudo nacional e de pequenos produtores”, com o mesmo cuidado na preparação como se se tratasse de um prato de carne ou de peixe. “Tiramos as proteínas e trabalhamos os legumes com a mesma consistência.” E quem saboreia a couve-rábano com maçã e endro, a beterraba com trigo-sarraceno (também o cereal é nacional e orgânico) e macadâmia, a alcachofra com feijões e queijo da ilha São Jorge ou o aipo preparado com cogumelos e radicchio, a remeter para o sabor de um bife Wellington, “fica saciado e não sente falta da proteína”, garante o chefe de cozinha, que espera vir a abrir um restaurante vegetariano, um projeto adiado devido à pandemia.
Na Casa de Chá da Boa Nova, em Leça da Palmeira, Matosinhos, também Rui Paula tem, desde 2019, um menu sem carne ou peixe (de 6, 12 ou 21 pratos à escolha, €90, €120 e €160). Por um lado, “a pensar na preservação do planeta”, por outro, “devido ao aumento do número de clientes com restrições alimentares e alergias”, justifica o chefe de cozinha, duas Estrelas Michelin, que demorou meio ano até conseguir criar uma carta vegetariana, sazonal, com produtos oriundos de pequenos produtores do Norte, e trabalhada “com diferentes texturas”. O balanço tem sido positivo: “Todos os dias, há pedidos e isso até nos ajuda a pensar em guarnições para os pratos do menu principal de peixe e marisco”, conta. Uma das criações que costumam causar maior impacto é a abóbora com pistácio e amêndoa, que chega inteira à mesa, depois de ter ido ao forno, com o seu interior transformado em puré.
Ao sabor da estação
Nos últimos anos, abriram restaurantes que elevam os vegetais a ingrediente principal. É o caso do Fava Tonka, em Leça da Palmeira, ou do Arkhe, em Lisboa, ao qual se irá juntar, brevemente, o Encanto, o novo projeto de José Avillez com uma ementa totalmente dedicada aos vegetais. “São muito interessantes em termos de sabor, textura e de possibilidades de preparação e combinação”, fundamenta o chefe de cozinha com duas Estrelas Michelin, no Belcanto, que espera abrir o restaurante (no lugar onde funcionou o Canto) ainda antes de o inverno acabar. “Há também uma tendência de aproximação crescente ao mundo vegetal que, sem dúvida, vem para ficar”, admite Avillez.
Mas nem sempre assim foi. Em 2018, quando Nuno Castro abriu o Fava Tonka, junto com Ricardo Rodrigues, chegou a ouvir, de alguns amigos, frases como: “Vais abrir um vegetariano, estás maluco?”. Passaram-se quatro anos e, a fazer fé no sucesso do restaurante, esses já terão dado a mão à palmatória, até porque o Fava Tonka, cujo balcão é um tronco reaproveitado de uma árvore, decorado com plantas e frascos com molhos e fermentados, não é um vegetariano qualquer. Desde a abertura que a matriz foi sempre a cozinha sazonal e orgânica, baseada nos vegetais (ou plant-based, termo atualmente em voga). “Na altura, não havia nada deste género. Em termos de posicionamento de mercado, tivemos de chamá-lo ‘vegetariano’, porque trabalhamos com lácteos, como o queijo e os ovos. Mas os produtos da época são o principal ingrediente”, justifica o chefe de cozinha. Por isso no menu do Fava Tonka (nome da semente do cumaru, fruto nativo da floresta amazónica), onde abundam legumes, tubérculos, raízes e frutos, dificilmente encontrará tofu ou seitan – a exceção é a couve recheada com a proteína vegetal introduzida há dias para dar textura ao legume. “Em quatro anos, foi a primeira vez.”
O maior desafio tem sido, porém, ir ao encontro dos pequenos produtores e contornar o crescimento dos legumes fora da época: “Há fornecedores que têm bons produtos, mas em quantidades insuficientes. Temos de andar à procura. Por outro lado, estamos em fevereiro e já começam a aparecer favas e ervilhas. Mas, se chegarmos a abril e cair um dilúvio, vai atrasar tudo outra vez; ou seja, estou dependente do que houver”, aponta, enquanto pana beringelas em panko para o almoço. “É um trabalho sazonal, de acompanhamento dos produtos, de perceber as tendências”, resume. Na manhã em que o visitámos, tinha abastecido a despensa. Chegaram produtos hortícolas – nabos, nabiças, espinafres, couves, acelgas… – de produtores da Póvoa de Varzim e de Vila do Conde. As raízes, como o topinambur e salsifis, vieram de Marco de Canavezes e de Baião. Da mesma região, entre o rio Douro e o Tâmega, também costuma receber o mel. Os fungos (pé-de-carneiro, trompetas-do-monte e cogumelos-de-paris), dispostos em cima do balcão, ingredientes que o chefe de cozinha gosta especialmente de confecionar, vieram do Canidelo, Vila Nova de Gaia. Na cozinha de Nuno Castro, não existe ainda desperdício zero, mas anda-se lá perto. Que o diga quem saboreia o granizado de talo de espinafres, feito amiúde para reaproveitar o que sobra do legume.
Também no Arkhe, aberto em 2018 pelo chefe luso-brasileiro João Ricardo Alves, no bairro lisboeta de Santos, nada se desperdiça. Da raiz ao fruto, não esquecendo as folhas, os vegetais são reaproveitados, tanto com os líquidos da cozedura (como a água que coze a beringela a vapor) como em receitas mais complexas. “Baseamos o nosso trabalho numa visão geral de cada produto para aproveitá-lo no seu melhor momento e não ter muito desperdício”, explica Alejandro Chávarro, sommelier do restaurante com uma ementa totalmente dedicada aos vegetais. No Arkhe (“início”, “origem”, no grego antigo), acredita-se que o futuro da alimentação saudável passa pela valorização e utilização dos produtos disponíveis em cada estação, praticando-se uma agricultura consciente. Nos menus (de três pratos €37, cinco pratos €57 e sete pratos €67), encontram-se sugestões como ravióli aberto de maçã, creme de parmesão e jus vegetal; ballotine de abóbora, endívia caramelizada, jus de tangerina e pastis (uma bebida alcoólica que resulta da maceração de diversas plantas) ou o blini de trigo-sarraceno crocante, couve coração-de-boi no carvão e creme de kimchi. Também o vinho ganha um papel relevante à mesa. “Ao contrário da maioria dos restaurantes, provamos os vinhos antes de começar a definir receitas e os produtos”, diz Alejandro Chávarro. Afinal de contas, tudo rima com a Natureza.
MORADAS
Feitoria > Altis Belém Hotel & Spa, Doca do Bom Sucesso, Lisboa > T. 21 040 0208 > ter-sáb 19h-22h30
100 Maneiras > R. Teixeira, 39, Lisboa > T. 91 091 8181 > qui-seg 19h-01h
Arkhe > R. Boqueirão Duro, 46, Lisboa > T. 21 139 5258 > seg-sex 12h30-14h30, 19h30-22h30
Fava Tonka > R. Santa Catarina, 100, Leça da Palmeira, Matosinhos > T. 91 534 3494 > qua-seg 12h30-15h, 19h30-23h
Casa de Chá da Boa Nova > Av. da Liberdade, 1681, Leça da Palmeira, Matosinhos > T. 93 249 9444 > ter-sáb 12h30-15h, 19h30-22h30
Pedro Lemos > R. do Padre Luís Cabral, 974, Porto > T. 22 011 5986 > ter-sáb 12h-15h, 19h-23h