Na vila alentejana do Redondo, há 20 anos que Vitorino produz vinho de talha. “Foi com o meu avô que comecei a beber este vinho. Tinha dez ou 11 anos, e punha-lhe uma pinga de água”, lembra o músico. E continua: “Só éramos autorizados a beber nas Festas dos Compadres, perto do Carnaval. Iniciávamos assim a ‘vida adulta’, por volta dos 14, 15 anos.” Hoje, Vitorino consegue encher com cerca de 300 litros de vinho as quatro talhas de barro que tem na adega. “Mas quem, na verdade, faz o vinho é o barbeiro, o Salvador Parreira”, adverte. “Eu só o bebo e partilho com os amigos. Ao fim de meio litro, já fico bêbedo… Sabe, o vinho põem-me a cantar.” Coisa que, por acaso, nós até agradecemos.
É este vinho produzido em talhas de barro que nos conduz numa viagem iniciada, há mais de dois mil anos, durante a passagem dos romanos pela Península Ibérica. E a primeira paragem deste roteiro faz-se precisamente a 30 quilómetros do Redondo, no Monte da Ribeira, em Reguengos de Monsaraz, herdade onde a vindima foi realizada nas últimas semanas de agosto. O trabalho prosseguiu, depois, na Adega José de Sousa, ali perto. No portefólio da marca existem duas referências: José de Sousa (três tintos) e os novíssimos Puro Talha (um branco e um tinto), ambos estão a chegar às prateleiras de alguns supermercados.
Apesar de não se terem deixado de produzir, principalmente no Alentejo, onde a tradição sempre se manteve, os vinhos de talha só agora estão a tornar-se mais visíveis, na medida em que existem cada vez mais produtores interessados na sua produção e comercialização. “Ainda é um produto para um nicho de mercado”, nota Domingos Soares Franco, enólogo e vice- -presidente da José Maria da Fonseca, empresa que se dedica à produção de vinhos de talha desde 1986, ano em que adquiriu a Adega José de Sousa, em Reguengos de Monsaraz. Da antiga adega alentejana, a José Maria da Fonseca “herdou” 20 talhas, chegando o espólio atual aos 114 exemplares. A talha mais antiga é de 1880 e apenas 30/40 estão cheias com vinho.
À mesa do Belcanto
Na Adega José de Sousa, depois de ligeiramente esmagadas a pé e desengaçadas à mão numa mesa de “ripanço”, as uvas brancas usadas para fazer os vinhos de talha – das castas Antão Vaz, Manteúdo e Diagalves – são postas dentro de grandes potes de barro. É lá que ocorre a fermentação e que se controla a temperatura com a rega das talhas quatro vezes ao dia. Depois, o vinho é retirado para outras ânforas, onde estagia por um período variável de quatro a dez meses. As uvas tintas – das castas Trincadeira, Aragonês e Grand Noir – também são esmagadas a pé e desengaçadas à mão, fermentando nas talhas arrefecidas com as regas durante oito dias. O adegueiro sobe o escadote, duas a quatro vezes por dia, para mexer o engaço e as uvas ficam em maceração até novembro. Após a prensagem, o vinho estagia, parte em talhas parte em cascos de castanho, até 16 meses.
Alerta Domingos Soares Franco que, no entanto, há mais trabalho a fazer. “Vou muitas vezes ao estrangeiro para saber mais sobre estes vinhos. Não há muita informação disponível nos livros e na internet. Na Geórgia, por exemplo, fazem-se estes vinhos há mais de oito mil anos”, conta o enólogo. “O vinho de talha não é um vinho para fazer dinheiro, mas sim para ganhar prestígio. A brincar, costumo dizer que tenho cinco filhos e mais um: o vinho de talha é o meu sexto filho”, acrescenta.
Para ser considerado um vinho de talha genuíno, tem que ser feito como os romanos faziam, defende Virgílio Loureiro, professor do Instituto Superior de Agronomia e consultor de vários produtores. “Há muita gente que pensa que está a fazer vinho de talha, mas que muda os seus processos. Chamam-lhe criatividade, eu chamo–lhe falta de conceito ou ignorância. Na minha opinião, estes vinhos são um símbolo da civilização mediterrânica. E ainda há bons exemplos de produtores que, no Alentejo, respeitam os hábitos milenares da presença romana.”
Em alguns (bons) restaurantes, também já se encontra vinho de talha. Em Lisboa, no duas Estrelas Michelin Belcanto, de José Avillez, estão à prova duas referências: Herdade de São Miguel, de Évora, e Post Quercus Baga, feito por Filipa Pato na região da Bairrada. Já o ART.TERRA Curtimenta, também da Herdade de São Miguel, encontra-se disponível no Beco, Mini Bar, Cantina Peruana, Bairro do Avillez, Cantinho do Avillez, todos restaurantes de Lisboa. “Os clientes mais familiarizados com este vinho são os espanhóis, os italianos e os alemães. Os portugueses não o pedem por iniciativa própria, mas, quando experimentam, gostam”, explica Rodolfo Tristão, sommelier dos restaurantes do grupo Avillez. No seu entender, “trata-se de um vinho mais elegante e fácil de beber, com aromas mais puros. Combina bem com sabores tradicionalmente portugueses”.
Oleiros como antigamente
“Dantes quase todos os alentejanos faziam azeite e vinho de talha nas suas adegas, mesmo os das famílias mais carenciadas.” Quem o conta é Augusto Palhaço, presidente da Vitifrades – Associação de Desenvolvimento Local, criada há 20 anos, em Vila de Frades, concelho da Vidigueira. O vinho servia para consumo próprio, era um pretexto para brindar e petiscar com os amigos. Ao longo dos anos, deixou-se de produzir tanto e, por isso, centenas de talhas foram destruídas de modo a ganhar espaço nas adegas. “Há talhas pequenas para 200 litros, outras maiores para 1600 a 1800”, explica Augusto Palhaço. Entretanto, a tradição foi recuperada e, hoje, as talhas maiores podem chegar aos 1500 euros.
Há 20 anos que a Vitifrades organiza um concurso em torno do vinho de talha, promovendo provas cegas e premiando as melhores referências da região. “Quando começámos, tínhamos 26 vinhos, agora temos 186”, conta o presidente da associação. Vila de Frades (considerada, desde 2008, a Capital do Vinho de Talha), Vila Alva, Cuba e Vidigueira são as quatro terras onde se produz mais vinho de talha. “Só nos concelhos de Vidigueira e de Cuba, contam-se cerca de 80 pequenos produtores”, diz. Para promover e proteger o vinho de talha, já foi apresentada a candidatura a Património da Humanidade.
O mais difícil é encontrar oleiros que se dediquem a fazer as talhas como antigamente, com as mesmas medidas e características. André Gomes Pereira, administrador da Quinta do Montalto, em Ourém, pretende aumentar o número e a dimensão das talhas, e até já anda em fase de testes. Admite que foi tarefa complicada, embora tenha encontrado em Asseiceira, Tomar, o oleiro José Miguel Figueiredo, da empresa Casa das Talhas. “É um negócio há muito na família. Já o meu bisavô trabalhava o barro”, revela José Miguel, com 46 anos de idade e 11 de ofício. Neste momento, a Casa das Talhas faz talhas que levam 200 litros. “Não tenho forno para peças maiores”, afirma. É uma tarefa lenta – é preciso amassar o barro, moldar, secar e cozer, o que demora mais ou menos um mês. Anos houve em que ninguém queria saber destes ofício, mas desde 2012 que tem havido uma maior procura. “Acho que se começa a dar mais valor ao trabalho feito à mão”, defende. Antigamente, era nestas talhas que se guardava o vinho, o azeite, os cereais, a água… Hoje, vendem-se também como decoração. Já falta pouco para o São Martinho, para se erguerem os copos e se provar o vinho. Desta vez – e porque não? – com vinho de talha.
O ESSENCIAL SOBRE…
Produzido na Península Ibérica desde o período romano, sobretudo a sul do Tejo, o vinho de talha chama-se assim porque é fermentado numa talha de barro. Na Geórgia, país com grande tradição na produção deste vinho, julga-se que seja feito há mais de oito mil anos.
Trata-se de um vinho produzido sem recorrer à tecnologia, com um sabor completamente diferente e com cores mais carregadas.
Cheira (e sabe) a barro e a pez de louro, e possui apontamentos de especiarias (pimentas e cravinho).
Para resultar num vinho de talha genuíno, Virgílio Loureiro defende que é preciso utilizar um recipiente e uvas bem maduras.
O professor do Instituto Superior de Agronomia considera ainda que uma talha do século XVII não deve ser pintada (impermeabilizada) com tintas do séc. XXI, mas sim com pez de loureiro ou cera de abelha.
No passado, as talhas eram produzidas sobretudo em olarias de três localidades alentejanas: Campo Maior, Vidigueira e São Pedro do Corval.