Caro leitor,
Escrevo-lhe a partir do meu quarto no Conrad Algarve, o único hotel desta cadeia em Portugal. Estou em plena Quinta do Lago, em Almancil, mas os tempos quentes de agosto já lá vão. A noite nem está má, o dia ainda esteve melhor, mas nada disso importa quando se vem para aqui trabalhar. Pensará o caro leitor que há trabalhos mais duros e eu sentirei obrigação de concordar. Mas a verdade é que já poderia estar a preparar-me para me deitar na confortável cama que me pisca o olho mesmo aqui ao lado. Em vez disto, estou a escrever-lhe, caro leitor. E olhe, que mesmo com a mudança horária desta noite, já são mais do que horas de dormir.
Só por causa disso, vamos diretos ao que nos trouxe aqui, neste último fim de semana de outubro. O super estrelado chefe de cozinha Heinz Beck, o nome por trás do restaurante Gusto, neste resort, organizou o festival Gourmet Culinary Extravaganza e neste sábado, 29, foi o primeiro jantar deste encontro de estrelas que só termina na terça, 1 de novembro.
Acabei de chegar de uma refeição cozinhada por quatro chefes internacionais que, entre si, somam seis estrelas Michelin. Mas saí da mesa sem que nada tivesse realmente explodido na minha boca. Não houve desconstruções, espumas e foram poucas as reduções. Estará a alta cozinha a tornar-se mais corriqueira? Eis a questão que me assola enquanto lhe escrevo, caro leitor.
Quantas pessoas estarão na cozinha que avisto da mesa comprida que arranjaram, à boca de cena, só para jornalistas? Dizem-me que serão perto de vinte, mas só ali, no mise en place, conto mais de uma dúzia. E ainda contabilizo mais na sala, a servirem, ora do lado direito para nos mudar os talheres, ora do lado esquerdo para nos porem os pratos à frente ou trocaram de copo.
Constato agora que a minha escrita já vai avançada e ainda nem uma linha dediquei à comida – afinal, foi para isso que me mandaram até cá. A refeição começa com um canapé delicioso, por acaso, e nem por isso vem na ementa que tenho na frente. Vale-nos a explicação de um dos chefes de sala, Daniel Dias. Trata-se de um taco, com caviar, maionese wasabi e liofilizado de cogumelos. E quando se trinca, eis que se descobre o melhor: um ovo de codorniz que rebenta – mas não explode – de forma apetitosa.
O amuse bouche outonal vem a seguir – é mais do que o apontamento anterior, dizem-me. Há puré de abóbora, crocante de chalota, cremoso de castanha e, outra vez, liofilizado de cogumelos. Enquanto oiço o intrépido cantor que continua a entoar na sala ao lado, agora mesmo um melancólico Tears in Heaven, indago acerca da carne fria que encontro no prato e dizem-me ser vitela fumada. A coisa está boa, mas não me faz cair da cadeira alta onde me ajeito a custo.
Até aqui, ninguém tinha copo de vinho na mesa. Sinal mais do que óbvio de que a refeição ainda não havia, realmente, começado. A estreia dá-se com um rosé da Bairrada. Miguel Martins, do hotel Bela Vista (Praia da Rocha), explica ser um Pinot Noir de 2010 de nome Principal. “A temperatura está um pouco mais alta do que o habitual para aguentar o prato”, garante. Realmente, é preciso ajuda para compreender a mistura agridoce terra-mar. Se por um lado encontramos berbigões no ponto, por outro cruzamo-nos com pedaços de morcela, de porco mangalica e ainda com uma geleia de groselha. “So You Think You Can Tell”, o refrão dos Pink Floyd, acompanha o prato do chefe Sidney Schutte, o holandês de 40 anos, que conquistou duas estrelas no Waldorf Astoria de Amesterdão.
Adiante, que os próximos três momentos serão da responsabilidade de Heinz Beck, a estrela (ou será melhor pôr aqui um plural?) da companhia, que é como quem diz o mentor desta noite e das que se seguem. Fico logo a salivar quando o avisto, do lado de fora do balcão, com um ralador numa mão e um pedaço de trufa branca na outra. Até parece que aquele aroma tão característico chega imediatamente à minha cadeira, mesmo que ainda tenha de esperar uns longos minutos até o maravilhoso carpaccio de vieira pousar à minha frente. Podia descrever-lhe o prato em pormenor, mas se no mesmo parágrafo pude usar as palavras trufa e vieira, haverá mais alguma coisa a acrescentar, caro leitor?
Mais surpreendente é o prato seguinte, a que o chefe chama de Tonno Tonatto, uma variação do prato tradicional Vitello Tonatto. O atum, bem vermelho, vem acompanhado de algo que à vista desarmada parece farofa. Ponho o dedo, confesso, e sinto que aquilo está frio e que, apesar da aparência de neve, também sabe a atum (maionese, alcaparras e atum, sujeitos ao azoto líquido). Quando a misturo com a geleia de tapioca, e como tudo à colherada, apreendo, finalmente, a dimensão do prato.
O terceiro apontamento by Heinz Beck fica a cargo de uns ravioli de pato (diz quem sabe que as massas são a sua maior especialidade, ou não trabalhasse ele há duas décadas em Roma, apesar de ser alemão). Desta vez, o chefe vem às mesas regar os ravioli com um caldo de caruma (em inglês – pine tree needles – soa muito melhor), e logo a seguir ralam-nos mais um pouco de cogumelos liofilizados (sim, é a terceira vez, caro leitor, não estamos a repetir-nos em vão). Gostámos muito. E, por nós, parávamos por aqui.
Mas ainda temos o tamboril de Roel Lintermans, o belga que conquistou uma estrela no Waldorf Astoria de Berlim, e a inusitada mistura da estrela de televisão inglesa Matt Tebutt (o único chefe da noite que não pertence ao outro estrelato). No primeiro caso, fiz as pazes com o tamboril, pois estava na consistência perfeita para não termos de mastigá-lo insistentemente. Além disso, vinha acompanhado de uma azeitona recheada de limão, um cubo de vinho Sauterne e descansava numa harmoniosa cama de maçã. No último prato, a mistura de salmonete, rabo de boi, cogumelos e creme de feijão branco deixou-me atordoada. Optei por comer as coisas por partes, numa vã tentativa de encontrar, desta forma, um sentido para o que tive de comer. Valeu-me a ajuda do único vinho tinto da noite, da região de Lisboa, envelhecido em carvalho durante um ano (Pomar do Espírito Santo Reserva). O chefe inglês ainda se justificou com um gosto particular em misturar peixe e carne. Só que nem tudo é misturável, acrescente-se aqui, em jeito de recado.
Esta missiva já vai longa, caro leitor, e por isso deixamo-lo sem grandes pormenores em relação à pré-sobremesa e sobremesa. Não que estivessem más, mas porque o senhor na sala do lado continua a cantar, embora ninguém lhe passe cartão. E agora lembrou-se do Personal Jesus e isso fez com que me recordasse do último concerto dos Depeche Mode e do outro que está para vir. Foi como se ouvisse as badaladas da Cinderela e tivesse que vir a correr até ao quarto, antes de virar abóbora. A verdade é que tinha este relato para lhe endereçar e as fotos para lhe mostrar. Espero que esteja tudo do seu agrado, caro leitor. Amanhã voltarei, porque já me prometeram festa na garagem e isso agrada-me.
Até amanhã.