No aviso, colocado à porta da ourivesaria Aliança, na Rua Garrett, lê-se: “Por motivo de obras no prédio, a (.) Aliança encerra definitivamente ao público no dia 15 de fevereiro.” Dirigida aos clientes, a informação depressa se tornou notícia nos jornais, na televisão e nas redes sociais. E o corrupio de gente não se fez esperar. Agora, há pessoas que param para apreciar as montras e chega a ser difícil circular lá dentro, tal é o constante entra e sai. Muitos vêm só para ver, lamentando o seu encerramento, elogiando o espaço e interrogando-se sobre o futuro da Aliança. Outros aproveitam para comprar: uns brincos, uma caixinha de prata para pôr os comprimidos, uma medalhinha para o bebé.
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A Aliança é uma das mais bonitas ourivesarias de Lisboa, tem o requinte de outras épocas, pelo seu interior sumptuoso em tons dourado e pastel ao estilo Luís XVI. Logo na entrada, a tela de Alves Cardoso (autor dos três painéis na Sala das Sessões da Assembleia da República), datada de 1914, decora o teto. O número 50 da Rua Garrett foi adquirido por trespasse em 1939 pela Aliança, vinda do Porto, para ocupar o lugar da ourivesaria Pinto, que ali existia. Foi alvo de obras de ampliação e era tão conceituada que, em 1944, é reinaugurada com honras de Estado pelo então presidente da República Marechal Carmona. Foi uma das grandes oficinas de ourivesaria da Península Ibérica, colecionou prémios e recebeu variadas encomendas, dignas de referência. Da Espada de Honra oferecida ao general Carmona exposta no Museu Militar, do sacrário da Igreja dos Congregados no Porto a peças para o santuário de Fátima, ao troféu do jogo FC Porto-Arsenal, de 1948.
No início dos anos 70, a loja e as oficinas do Porto acabariam por fechar.
O edifício, comprado pela empresa imobiliária catalã Solayme Real Estate, vai ser transformado em apartamentos de aluguer de curta duração. As obras, que se prevê durarem dois anos e que implicavam o fecho da ourivesaria por questões de segurança, vieram ditar o seu encerramento definitivo.
Tudo o que tem a ver com o negócio será retirado, enquanto que o mobiliário e as telas serão deixados à responsabilidade dos novos proprietários.
No projeto de obra, apresentado pelos proprietários e aprovado pela Câmara Municipal de Lisboa, na memória descritiva e justificativa está escrito: “No caso da atual Ourivesaria Aliança, pela qualidade arquitetónica da sua fachada e interiores, datada do início do século XX, de estilo oitocentista e tom romântico, todo o espaço será preservado, incluído o mobiliário existente.” Só o futuro o dirá.
A HISTÓRIA REPETE-SE
O caso da ourivesaria Aliança é mais um a acrescentar à lista dos espaços comerciais históricos do Chiado que têm vindo a desaparecer. E a verdade é que é por estes espaços existirem que o Chiado tem o seu encanto. É importante que os interiores sejam respeitados e preservados, mas isto só, definitivamente, não basta.
Há cerca de um mês, do outro lado da Rua Garrett, a centenária ourivesaria Eloy de Jesus fechou também portas. As obras, que duraram apenas três dias, deram lugar a um loja deroupa feminina, e só as portas de ferro com motivos vegetais e o monograma da firma pintado em dourado relembram que esta foi morada de joalheiros da Casa Real. Lá dentro, na zona dos provadores, o antigo cofre embutido na parede guardou em tempos joias e outros valores.
Em abril de 2011, a alfaiataria Piccadilly fechava portas para dar lugar a uma loja de uma cadeia de sanduíches e sumos.
O senhorio, um fundo imobiliário do banco Millennium, pressionava os proprietários a sair obras no prédio, alegava e as dificuldades financeiras levaram os herdeiros de Manuel Mendonça a aceitar a indemnização proposta. A antiga alfaiataria que vestiu políticos, diplomatas e artistas, funciona agora no atelier da Rua Anchieta (29, 1.° andar) para onde foi levado parte do mobiliário, assim como o painel em vidro espelhado, fundo preto e letras douradas com o seu nome, que se encontrava à porta.
A sapataria Orion, do outro lado da rua e bem perto da Gardénia, encerrou as portas no final de 2011.
Mais abaixo, já na Rua do Carmo, no número 70, a Livraria Portugal conta os dias até ao final de fevereiro para fechar portas.
A poucos meses de completar 71 anos, a histórica livraria luta há três anos pela sobrevivência, mas a acentuada quebra de vendas ditou o inevitável. Os proprietários ainda tentaram ceder o espaço a outros livreiros de forma a dar continuidade ao negócio, mas ninguém se mostrou interessado. Aqui vai nascer outro ramo de negócio, o qual não nos foi revelado. Entretanto, ao balcão, ouve-se que estes últimos dias (desde que foi anunciado o encerramento) foram os melhores dos últimos anos. Em breve, quando encerrar, chegará “o pior diade 2012”.
Antes e depois
ARMAZÉNS RAMIRO LEÃO / BENETTON R. Garrett, 83-93
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Casa fundada em 1888, vendia tecido a metro, botões, fitinhas e alfinetes. Após o incêndio de 1988, a Casa Batalha instalou-se provisoriamente aqui. Em 2001, o espaço transformou-se numa megastore da Benetton, restando apenas o velhinho elevador e que não está no lugar original.
RETROSARIA IRMÃOS DAVID / SISLEY R. Garrett, 112-118
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Cá fora, ainda se pode ler o nome da casa. Lá dentro, mantiveram-se tetos e expositores.
CASA SOUZA / BOSS R. Garrett, 76-78
A Casa Souza foi fundada em 1944, tendo começado por dedicar-se quase exclusivamente à venda de tecidos. Deixou o Chiado e concentrou loja e atelier de alta-costura na R. dos Sapateiros, 181.
ALFAIATARIA PICCADILLY / VITAMINAS R. Garrett, 69-71
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Abriu como Vitorino, Ferreira & Almeida L.ª do outro lado da rua, nos 58-60. Em 1919 altera a morada e, em 1924, toma o nome Piccadilly. Fechou em 2011 e só a memória nos faz lembrar da alfaiataria.
CHAPELARIA GARDÉNIA / GARDÉNIA R. Garrett, 54
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Além de manter o nome, manteve o espaço projetado por Raul Lino.
CENTRO APOSTOLADO LITÚRGICO DAS IRMÃS DISCÍPULAS DO DIVINO MESTRE / GARDÉNIA ACESSÓRIOS R. Ivens, 70
Os santos, terços, velas, hóstias deram lugar a sapatos e malas. O interior foi mantido.
O que ainda se mantém
CASA HAVANEZA Lg. Chiado, 25
Fundada em 1864, foi centro de tertúlia da Lisboa queirosiana. A fachada atual e o interior são de 1960.
A BRASILEIRA R. Garrett, 120-122
Fundada em 1905, a fachada atual, assinada por Norte Júnior, é de 1925.
PASTELARIA BÉNARD R. Garrett, 104
Famosa casa de chá no século XIX (1868), é um dos mais emblemáticos cafés de Lisboa.
LIVRARIA SÁ DA COSTA R. Garrett, 100
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A sobrevivência da Livraria Sá da Costa, a funcionar desde 1943 nos números 100-102, permanece ameaçada, depois de já ter sido posta à venda por duas vezes, mas sem sucesso.
PARIS EM LISBOA R. Garrett, 77
Abre em 1888 . Vendia fazendas, sedas e bordados vindos de Paris. Em 1902, a rainha D. Amélia nomeia-a fornecedora da Casa Real.
Depois de 1974, adapta-se ao novo mercado e passa a vender em exclusivo roupas de casa.
FARMÁCIA DURÃO R. Garrett, 90
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Em 1882 vendia o “pó da viscondessa”, “remédios para a solitária”, “xarope peitoral”, “creme virginal”, “emplastro contra a dor ciática” e “laranjada-purgante” .
LIVRARIA BERTRAND R. Garrett, 73
A primeira livraria abriu em 1732 e tinha morada na Rua do Loreto. Em 1773, após o terramoto, e já com o nome Bertrand muda-se para o Chiado. É a livraria mais antiga do mundo (certificado pelo Livro de Recordes do Guinness).
FLORISTA PEQUENO JARDIM R. Garrett, 61
Situada num vão de escada, foi fundada por um francês no final do século XIX.
CASA PEREIRA R. Garrett, 38
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Inaugurada em 1930, vende chás, cafés, bombons, rebuçados e bolachas a granel.
LIVRARIA FERIN R. Nova do Almada, 70
Fundada em 1840, mantém-se até hoje na mesma família. Encadernadores da Casa Real no tempo de D. Pedro V, editora até aos anos 1940, guarda ainda os ferros e prensas e o mobiliário em mogno maciço.
JOALHARIA DO CARMO R. Carmo, 87B
Aberta desde 1924, a joalharia continua na família dos fundadores. A fachada em meio-arco, decorada a ferro forjado, e os interiores recordam o Chiado de outros tempos.
LUVARIA ULISSES
R. Carmo, 87A
Criada em 1925 por Joaquim Rodrigues Simões, mantém-se exatamente igual ao que era quando abriu as portas pela primeira vez.