Carminda entrelaça pedaços de tecido em pele e vai formando uma flor colando as pétalas meticulosamente.
É apenas um acessório que vai embelezar um sapato feminino, mas significa muito mais do que isso.
“Os nossos funcionários são artistas. Não devem estar escondidos. Queremos mostrar como é que o sapato é feito e por quem”, explica-nos Patrícia Correia, responsável de marketing da Helsar enquanto nos guia por esta unidade fabril de sapatos com mais de três décadas e emprega 68 pessoas. A Helsar é uma das fábricas que integra o Circuito de Turismo Industrial de S. João da Madeira, o primeiro do País, inaugurado há dias. A ideia começou a ser desenhada há mais de cinco anos. Se, lá fora, há regiões que apostam no turismo industrial -caso de Turim (Itália), Toledo (Espanha) ou Angers (França) porque não fazê-lo em S. João da Madeira? Região conhecida pela tradição na área industrial, tem como lema Labor-Cidade do Trabalho. O projeto, apoiado pelo QREN ao abrigo do ON.2, no valor de 600 mil euros, é o “sonho tornado realidade” de Vanda Cardoso, a técnica de turismo que o desenvolveu e nos serve de guia nesta visita. E uma forma de “valorizar o tecido produtivo da cidade”, assegura Castro Almeida, o presidente da autarquia.
Os operaários são artistas, não devem estar escondidos
O roteiro pelo circuito industrial é extenso e dificilmente conseguirá fazê-lo em apenas um dia. Por agora, e uma vez que outras unidades se podem juntar ao projeto, fazem parte o Museu da Chapelaria, Helsar, Viarco, FEPSA, Cortadoria Nacional do Pelo, Everest, Heliotextil, Centro de Formação Profissional da Indústria de Calçado e Centro Tecnológico do Calçado de Portugal. Há vários circuitos possíveis (ver caixa “As Visitas“) conciliando os diferentes segmentos: chapéu, lápis, calçado, passamanarias.
Mas voltemos à Helsar. Os “turistas” passam pelo armazém onde se encontram os diferentes materiais usados para vestir os sapatos. “É a parte mais colorida da fábrica”, diz Patrícia enquanto aponta para as amostras. “Toquem e percebam a diferença.” Da pele de cobra verdadeira e da falsa, do pelo de coelho e do sintético, da pele de peixe, do veludo, da cortiça e, até, do feltro, a grande novidade surgida no ano passado. Percorre-se o departamento criativo “onde se elaboram os desenhos, se tiram os moldes”. Um dos criativos escolhe a forma adequada para um desenho enviado pela Schumacher. Só para a marca alemã, a Helsar produz 9 mil sapatos por estação. Se somarmos a produção para a Jean-Paul Gaultier (sapatos e malas feitas à mão), Malene Birger, Borsalino. percebemos porque está entre as melhores a nível nacional exportando mais de 60% da produção.

Na área de montagem atravessamos as diferentes etapas do fabrico dos sapatos, a maioria manuais (fazem, até, sapatos personalizados) desde a palmilha ao salto até ao acabamento final onde são escovados, polidos, pintados. Antes de sairmos, ainda passamos pelo showroom conhecido pelas mulheres por “sala dos desmaios” e sala museu onde se expõe as coleções desde a origem.
Patrícia Correia acredita que os circuitos são uma forma “de divulgar a profissão” e combater “a falta de mão de obra”. “Os estudantes não sabem o que é trabalhar numa indústria”, lamenta.
“Abrir a fábrica à sociedade e expor os produtos à crítica” é também a intenção da Everest, fábrica de calçado de homem.
Além de dar um novo “alento” aos trabalhadores.
“O trabalho é muito rotineiro, vão se sentir orgulhosos ao ver entrar turistas “, acredita André Fernandes, um dos responsáveis. Quem entra fica a conhecer as matérias-primas da marca criada há mais de 70 anos, responsável, entre outras, pela linha de calçado do estilista Miguel Vieira.
Observam-se as costureiras atentas às máquinas de costura e os sapatos a entrarem nas formas “onde devem ficar no mínimo 48 horas para ganhar estrutura”. Uma lufa-lufa diária para responder às muitas produções, tanto de marca própria (Everest e Cohibas) como de private label (regime de subcontratação). Nesta altura, e depois de feitas as entregas para o verão, preparam-se para apresentar a coleção de inverno na Micam, a decorrer em março, em Milão.
Lápis e Fitas
A indústria de calçado e chapéus de S. João da Madeira está indiscutivelmente ligada ao lápis. A Viarco que começou por ser uma fábrica de chapéus em 1919 e considerada um caso de sucesso foi das primeiras a integrar o circuito. “Consideramos que, por ser única, devia ser disponibilizada ao público”, afirma José Vieira, atual administrador, neto do fundador da Vieira e Araújo. “É o concretizar de um sonho.
A dada altura víamos o impacto que a fábrica tinha, as pessoas ficavam deslumbradas”, lembra, enquanto atravessamos a Casa dos Vernizes, a Antiga Casa dos Fornos (agora sala de acolhimento) e entramos no “núcleo duro” da Viarco. “Quisemos mantê-la simples, verdadeira, bruta, com história e memória. Se tudo isto fosse fotografado a preto e branco, poderíamos imaginar a revolução industrial.” Aqui, onde o grafite, a argila e a água são misturados para obter a mina (o que pode demorar três a quatro semanas). Na Viarco, não verá mais do que 20 trabalhadores.
“As probabilidades de verem a fábrica toda em funcionamento são poucas. Vamos produzindo à medida das necessidades.” Estão, assim, longe de produzir os mais de 140 mil lápis/dia de outrora. Mas o facto de não terem uma grande produção traz outras vantagens como “permitir soluções diferenciadas, mais personalizadas”, salienta. A visita termina num novo espaço criado à boleia dos Circuitos: uma loja de fábrica onde também se farão ateliês.
É para mostrar que “em quase todo o lado encontramos um produto Heliotextil” que esta unidade de etiquetas e passamanarias (1964) se abre, agora, ao turismo. Desde as fitas Sonia Rykiel, à Atlantis, ao licor Grand Marnier, à UNICEF. até às simples etiquetas de lavagem colocadas nas roupas ou têxteis–lar, ou ainda às lanyards (fitas para usar ao pescoço) de merchandising. Dezenas de teares mecânicos trabalham à velocidade do segundo para garantir milhares de metros de produção. A empresa possui, ao lado, uma outra unidade (fechada ao circuito) dedicada à impressão, onde se estampam os equipamentos desportivos de praticamente todas as equipas de futebol. “Na semana passada tivemos até uma requisição de fitas para identificar ovelhas”, sorri Susana Correia, uma das responsáveis. Prova que a empresa está, de facto, em todo o lado.
Do Pelo ao Feltro
Se há “acessório” que nos remeta para S. João da Madeira são os chapéus. E nestas visitas turísticas é possível aprender como se fazem, desde o pelo ao feltro que lhe dá origem. A Cortadoria Nacional do Pelo dedica-se à preparação das peles de coelho, lebre e castor (esta vem, principalmente, dos Estados Unidos) que aqui chegam no estado natural. “Não temos peles que são protegidas” avisam logo à entrada. Lá dentro, cerca de meia centena de pessoas estão encarregues de um sem-número de operações: limpam as peles, retiram impurezas e fibras grossas, apagam vincos, até saírem em forma de pelo, fofinho, a maioria (90%) para a produção de feltros para chapéus.
É o que acontece na FEPSA, líder mundial no fabrico de feltros para chapéus, onde trabalham 180 pessoas e a nossa próxima etapa. Daqui saem os feltros dos chapéus (96% são para exportação) de George W. Bush, da polícia inglesa, dos cowboys, dos judeus. de Harrison Ford no último filme Indiana Jones, ou de Johnny Deep em Public Enemies. Meio milhão de unidades por ano.

Lá dentro, entre uma série de máquinas e cones gigantes a soltar vapor, percebe-se que humidade e temperatura são os fatores essenciais para o fabrico do feltro. “Isto só acontece nas fibras animais. O feltro vai reduzindo a sua superfície e aumentando a espessura”, explica-nos Acácio Coelho, responsável de desenvolvimento. “Quando nasce um feltro, já sabemos a dimensão, a cor, as abas do chapéu.” Em forma de sino ou capeline, de copa baixa ou mais alta, com ou sem goma… O Museu da Chapelaria (que integra este circuito turístico), situado na antiga Empresa Industrial de Chapelaria, é outra peça fundamental na recuperação de memórias e do fabrico do chapéu. É que mais do que mostrar parte do património material de S. João da Madeira, o primeiro circuito industrial português abre as portas ao património imaterial da região. E em novembro, a cidade será a anfitriã do Congresso Europeu de Turismo Industrial.
AS VISITAS
Enquanto a emblemática Torre da Oliva não acolher o Wellcome Center do Circuito Industrial, o que deverá acontecer antes de junho, as inscrições deverão ser feitas no Museu da Chapelaria, em www.turismoindustrial.cm-sjm.pt (ou pelo 256 200 204).
Aos visitantes será fornecida uma bata branca para a entrada nas diversas unidades fabris, além de áudio-guias em português, inglês, francês e espanhol, estando ainda disponível uma aplicação para IPhone. Cada visita será acompanhada por um monitor. Poderá fazer o seu próprio circuito ou optar por um dos já planeados (Chapéus e Lápis/Lápis e Passamanarias/ Chapéus, Lápis e Passamanarias/Feltro e Calçado de Senhora/Feltro e Calçado de Homem/Chapelaria: do Pelo ao Feltro /Chapelaria: do Pelo ao Chapéu/Calçado e CFPIC ou Calçado Total (preços €5 a €10).