Sentados à sua secretária, com um paciente queixoso à frente ou em pé no corredor dum serviço de urgência, com um doente crítico numa maca, os médicos têm muitas vezes dúvidas sobre o melhor a fazer. Um dos pilares da Medicina Baseada na Evidência é que o médico procure, para cada caso, a melhor prova científica disponível.
Mas a quantidade de conhecimento científico que se produz hoje em dia é avassaladora. Considerando apenas a área da investigação biomédica e apenas uma das principais bases de dados de estudos científicos, a PubMed, são carregados mais de um milhão de estudos por ano, o que equivale a um a cada dois minutos. Não é humanamente possível acompanhar tanta produção de informação.
“É um desafio mantermo-nos atualizados, sobretudo em especialidades tão abrangentes como a Medicina Geral e Familiar. Estão sempre a aparecer novidades: novos tratamentos, novas recomendações, a ser postos em causa testes de diagnóstico mais antigos…”, explica Catarina Viegas Dias, médica de família na UCSP (Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados) Olivais, em Lisboa.
A também docente convidada da Nova Medical School refere que, muitas vezes, a solução mais rápida passa por “perguntar a um colega mais velho”. Apesar disso, alguns estudos mostram que não há uma associação evidente entre a experiência do médico e a qualidade de cuidados prestados. Assim, o ideal é recorrer a fontes credíveis para tirar as dúvidas. “Mas há um problema de falta de tempo nos nossos horários para este tipo de trabalho que precisa de ser feito. Acabamos por estudar no tempo livre, porque sabemos que ser médico é estudar para a vida”, refere Catarina Viegas Dias. Só que, sem boas ferramentas, nem assim chega.
Alguns estudos mostram que os médicos têm, pelo menos, uma dúvida por cada dois pacientes que atendem, mas, na melhor das hipóteses, procuram resposta para metade das perguntas que colocam a si mesmos.
E nem sempre usam os melhores recursos. Foi com isso em mente que Catarina Viegas Dias, Clara Jasmins, David Rodrigues e Bruno Heleno – todos clínicos de Medicina Geral e Familiar e investigadores da Nova Medical School – decidiram recolher mais de 200 dúvidas de médicos de família e desafiar-se a encontrar as respostas da forma mais rápida e eficiente possível.
Entre as perguntas, estavam questões como “Existe algum suplemento alimentar com eficácia no aumento de imunidade contra a Covid-19?”; “Quais os fármacos que mais frequentemente causam ejaculação retrógrada?”; ou “Existe algum sal de ferro oral superior para a anemia ferropénica por perdas ou todas as formas são equivalentes?”
Recursos caros
O estudo que publicaram, em novembro de 2022, na revista científica Plos One, mostra que encontraram a resposta para mais de 90% das perguntas colocadas pelos médicos em softwares de decisão online que oferecem sumários clínicos. E com um tempo mediano de pesquisa de apenas quatro minutos para cada dúvida. “Estas plataformas, como a BMJ Best Practice, a DynaMed e a UpToDate, são fontes credíveis, de leitura rápida e fácil, e têm uma grande vantagem: integram, no próprio resumo, uma avaliação da qualidade e do rigor dos estudos, porque a qualidade da evidência não é toda igual”, explica a investigadora. (Ver caixa Quem fiscaliza a Ciência?)
Resumindo: há soluções para esta dificuldade tão frequente. É possível responder à maioria das dúvidas através de fontes credíveis e sem perder muito tempo, consultando estes recursos que oferecem resumos dos estudos científicos que vão sendo publicados. Acontece que estas plataformas são pagas e o Serviço Nacional de Saúde não as disponibiliza de forma consistente. A maioria dos médicos não tem acesso a elas, e isso tem um impacto negativo nos cuidados que prestam.
“Eu subscrevo quatro plataformas. Custam-me qualquer coisa como €1 200 por ano. Pode dizer-se que é caro, mas acho que tenho, eticamente, a obrigação de estar atualizado: sem conhecer a boa ciência disponível, não é possível praticar boa medicina”, esclarece António Vaz Carneiro, médico, professor catedrático e diretor do Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência.
O médico defende que, com a quantidade de estudos publicados anualmente, “a questão já não é saber se há resposta para as dúvidas; é apenas saber onde ela se encontra e se o estudo é bom ou não”.
Estes grandes softwares de apoio à decisão clínica, refere, “contêm informação que cobre toda a medicina moderna, com uma base científica sólida e aprofundada. Permitem que o médico, seja às três da manhã num serviço de urgência ou às duas da tarde no seu consultório, aceda e se informe do que deve fazer, tanto a nível de diagnóstico diferencial como de exames a pedir ou terapêutica a administrar”.
Por isso, há seis anos, quando assumiu a presidência do Conselho Nacional de Formação Profissional Contínua, um órgão consultivo da Ordem dos Médicos, Vaz Carneiro levava consigo um sonho e uma missão: disponibilizar estas plataformas a toda a população portuguesa. O plano era intervir em duas frentes: por um lado, fornecer os necessários instrumentos para uma boa decisão a todos os médicos e profissionais de saúde; por outro, promover a tão necessária literacia em saúde de todos os cidadãos.
Assim, a 6 de setembro de 2018, a notícia da agência Lusa, republicada um pouco por todo o lado, inclusive no site da Direção-Geral da Saúde, dá a boa nova: está a nascer “uma nova era para o SNS” com o projeto Sistemas de Apoio à Decisão Clínica (SADC) que vai arrancar em breve, dando acesso grátis às quatro principais plataformas de resumos clínicos – UpToDate, DynaMed Plus, BMJ Best Practice e Cochrane Library – a toda a população portuguesa, numa parceria entre a Ordem dos Médicos e o Ministério da Saúde, então dirigido por Adalberto Campos Fernandes.
Cinco anos depois, o ponto de situação deste projeto, nas palavras do seu coordenador, Vaz Carneiro, é este: “Morreu.” Os contratos foram assinados em 2018 – pouco antes da saída de Adalberto Campos Fernandes e da entrada de Marta Temido –, mas têm estado numa gaveta.
Como funciona a Ciência
Vaz Carneiro continua a trabalhar com a Ordem dos Médicos para o implementar, agora numa escala mais pequena: já não para dar acesso a todos os cidadãos, mas apenas aos médicos, e já não as quatro plataformas, mas apenas uma, a BMJ Best Practice. “Estamos nas fases finais de negociações com a BMJ, a estabelecer um contrato que envolve um período experimental, e devemos ter novidades nos próximos tempos”, revela o médico.
Até lá, o acesso é escasso, irregular e assimétrico entre os profissionais de saúde. Alguns hospitais são subscritores, outros não. Algumas Administrações Regionais de Saúde garantem acesso, a maioria não. Muitos médicos utilizam subterfúgios para estar informados em prol dos pacientes: usam VPN (Rede Privada Virtual) de países nórdicos, onde uma das plataformas – a BMJ – é gratuita para toda a população, ou recorrem ao Sci-Hub, um site que fornece acesso a artigos e livros científicos à custa da violação dos direitos autorais.
“Na ARS de Lisboa e Vale do Tejo, os médicos de família têm acesso, embora de forma irregular, a uma destas plataformas, a Dynamed, mas há zonas do País, como o Alentejo e a Região Centro, onde, segundo sei, não há acesso a nenhuma plataforma de apoio à decisão. Há colegas que fazem o esforço financeiro de comprar a título particular, outros não. Depende dos critérios e das possibilidades individuais”, conta Catarina Viegas Dias.
Para a médica, seria importante o acesso generalizado, tanto a profissionais de saúde – dando-lhes ferramentas para decidir melhor – como a pacientes. “Muitas vezes, em consulta, os utentes aparecem-nos com páginas da Wikipédia, com informação duvidosa, e muito do pouco tempo de consulta tem de ser usado para mudar crenças erradas.”
O “Dr. Google” impera com o seu catastrofismo e há ainda um grande desconhecimento de como funciona a Ciência. Numa entrevista à VISÃO, o químico Nuno Maulide, um dos nossos grandes divulgadores científicos, explicou-nos assim:
“As pessoas podem ficar desiludidas, mas a Ciência nunca prova nada. Assim que se gera uma teoria, a primeira coisa que a Ciência faz é tentar provar que essa teoria está errada. Quando todos os testes e previsões de que essa teoria está errada falham, aí podemos dizer: ‘Esta teoria, para o conhecimento que temos agora, é a mais adequada para explicar as observações que fazemos.’”
E continua: “Já os negacionistas fazem o contrário. Pegam numa teoria – de que a Terra é plana, por exemplo – e vão à procura especificamente de observações que, de certa forma, possam ser explicadas pela teoria (‘eu não vejo nenhuma curvatura, portanto a Terra só pode ser plana’), e evitam tudo o resto que possa contradizer isso.”
No fundo, é a grande diferença entre honestidade e desonestidade intelectual.
Quem fiscaliza a Ciência?
A pressão para publicar a que os investigadores estão sujeitos e a influência de empresas que realizam estudos para a indústria deram origem àquilo que é conhecido na gíria académica como “fábricas de artigos científicos”. Ou seja, artigos que são encomendados por empresas, tendo em vista atingir uma conclusão específica que é conveniente aos seus interesses. No ano passado, por exemplo, entre janeiro e março, de acordo com a revista Nature, foram “despublicados” à volta de 370 artigos fraudulentos e havia cerca de outros 1 300 considerados suspeitos.
Mesmo quando não estão em causa situações de fraude, os estudos não têm todos a mesma qualidade. Aspetos como o desenho do estudo – ou seja, a forma como permite definir a causalidade entre variáveis –, o número de participantes, a existência ou não de um grupo de controlo ou a exclusão de fatores de confusão que podem enviesar os resultados, determinam a credibilidade e permitem avaliar se a força da evidência é alta ou baixa.
As plataformas de apoio à decisão médica – como a UpToDate, a DynaMed Plus ou a BMJ Best Practice –, além de resumirem a informação das investigações científicas publicadas, avaliam a qualidade da evidência e a solidez da recomendação. Isso significa que, por exemplo, entre dois estudos com o mesmo tema, mas com resultados contraditórios, o médico consegue perceber qual deles é mais robusto do ponto de vista da sua validade científica.
No fundo, conclui-se que só a Ciência pode fiscalizar convenientemente a sua própria produção.
(Artigo publicado originalmente na VISÃO Saúde nº 30, de junho/julho de 2023)