Se já deu por si a perder as forças, a ficar com a visão toldada e a deixar de ouvir o que se passa à sua volta, é sinal de que o nervo vago – ou pneumogástrico – está a cumprir a sua missão.
O décimo de 12 pares de nervos cranianos, localizado na nuca (acima do mesencéfalo), destaca-se pela extensão: começa no tronco cerebral, estende-se pelo pescoço, passa pelo tórax, o abdómen e o intestino e termina na região urogenital. Por ter várias ramificações, a sua qualidade errante terá levado a que fosse batizado de “vago” (do latim vagus). Integrado no sistema nervoso autónomo e rico em fibras sensoriais e motoras, este nervo faz a ponte entre o cérebro e os órgãos viscerais, sendo uma espécie de sentinela do organismo. Uma vez estimulado, interfere no funcionamento desses órgãos, que estão fora do nosso controlo consciente.
Diante de uma ameaça, real ou percebida, a estimulação exagerada deste nervo complexo conduz à ativação e à desativação de funções vitais, como forma de repor o equilíbrio do sistema: o estômago ou as tripas dão sinal de si, surgem palpitações, a cabeça fica às voltas, é-se acometido de tonturas, suores e fica-se “branco como a cal”. É a chamada síncope – ou síndrome – vasovagal (SVV). Em bom português, tem-se um desmaio.
A expressão “reação vagal” entrou no léxico dos portugueses quando, há oito anos, o então Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, se sentiu mal e caiu durante o discurso das comemorações do Dia de Portugal, na Guarda, tendo recuperado a consciência alguns minutos depois. Foi a segunda vez que o político passou pela incómoda experiência. A primeira deu-se em 1995, em plena tomada de posse do governo de António Guterres, no Palácio de Belém. Na altura, o então ex-primeiro-ministro atribuiu o sucedido ao estado emocional em que se encontrava após a morte do sogro, mas o caso ficou para a História e deu azo a especulações.
Permanecer muito tempo em pé, ficar exposto a ambientes muito cheios ou com temperaturas elevadas, passar uma noite em claro, estar em jejum, embriagado ou desidratado podem desencadear este “apagão”, mas os gatilhos de natureza emocional também contribuem para cenários de pré-desmaio e desmaio: ter medo de agulhas, ficar numa pilha de nervos antes de uma avaliação ou receber uma má notícia, por exemplo.
Alarme, ou nem por isso?
Fica-se “para morrer”, mas, geralmente, não passa de um susto sem implicações de maior. O que se passa, no plano fisiológico, é a descida abrupta da frequência cardíaca e da pressão arterial, reduzindo a irrigação do coração e do cérebro, e o sistema desliga temporariamente, à semelhança do que sucede com os equipamentos informáticos em sobreaquecimento.
“A síncope vasovagal é a causa mais frequente de desmaio, quer em adultos quer em crianças, e costuma acontecer em situações de dor intensa, de maior stresse, como medo e exposição ao calor, e é habitualmente progressiva, não surgindo do nada”, esclarece Renato Oliveira, médico interno de Neurologia do Hospital da Luz.
A razão pela qual o risco de ter SVV toca mais a uns do que a outros tem que ver com “a predisposição genética, hormonal e a propensão a ter perturbações ansiosas”, mas, geralmente, “a recorrência dos episódios é aleatória e muitas vezes imprevisível”.
É natural que surjam sentimentos de insegurança do tipo “será que vai voltar a acontecer?”, “e se eu bater com a cabeça no chão, sem ninguém por perto para me socorrer?”, ou sinais de abatimento, que tendem a dissipar-se e a pessoa volta ao seu ritmo normal.
Afinal, a SVV não é uma doença e, na maioria dos casos, não requer tratamento específico, talvez apenas alguns ajustes ligados ao contexto em que ocorreu, ou costuma ocorrer (por exemplo, tirar sangue deitado se tiver medo de agulhas).
Embora seja a causa mais frequente de desmaio, existem outras que levam à perda transitória da consciência. Daí ser importante estar atento a sinais de alarme específicos para realizar uma investigação complementar de forma seletiva. Renato Oliveira enumera alguns: “Quem sofre de diabetes e desmaia, é provável que uma das causas seja a hipoglicemia; se o desmaio for repentino, acontecer a seguir a palpitações, a uma forte dor de cabeça ou no peito ou, ainda, quando a pessoa recupera a consciência e tem assimetria facial (ficar com a boca ao lado), fala arrastada e um estado de desorientação, deve ser vista pelo médico para ter um diagnóstico diferencial e despistar outras condições clínicas potencialmente graves.”
Erros comuns
Quando o sistema nervoso parassimpático leva a melhor ao simpático (um promove a resposta de relaxamento, o outro prepara o organismo para a ação), há funções que ficam, provisoriamente, bloqueadas, e o desequilíbrio do sistema nervoso autónomo pode, ou não, culminar no desmaio, mas há uns que são mais aparatosos do que outros.
“Mais de metade dos desmaios vulgares têm manifestações motoras, como tremores, esticar-se ou cerrar os dentes, sendo comum confundi-los com a epilepsia”, observa o neurologista Pedro Cabral.
O coordenador do Centro de Epilepsia Refratária do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental explica o mistério: “O reforço do tónus vagal faz com que os batimentos cardíacos abrandem, ou parem por dois ou três segundos, e o sangue não chegue ao cérebro; se a cabeça continuar elevada, podem surgir contrações musculares involuntárias.”
Pedro Cabral refere que a síndrome é mais frequente nos jovens, em pessoas idosas e nas mulheres – “elas desmaiam com maior facilidade por serem mais propensas a sofrer de enxaqueca, uma perturbação do tónus vascular cerebral” – e chama a atenção para a forma como, por vezes, se lida com os primeiros sinais apresentados pela pessoa afetada: “Na discoteca, na missa ou numa cerimónia, há que ter o bom senso de perceber que, se a pessoa está pálida, suada e com tonturas, levá-la a apanhar ar em vez de baixar a cabeça não é a melhor ajuda.”
Também não faz sentido marcar exames logo a seguir à ocorrência: “É um erro fazer um eletroencefalograma, porque pode mostrar uma coisa de natureza epilética que só confunde o diagnóstico”, adianta o clínico. Nos casos em que a doença existe e em que há resistência aos tratamentos, “a estimulação vagal usada em neurocirurgia pode reduzir a frequência e a intensidade das crises”.
Teorias controversas
Nas últimas décadas, surgiram abordagens orientadas para a sincronização dos ritmos fisiológicos como via para equilibrar o nervo vago. A Teoria Polivagal, desenvolvida nos anos 1990 pelo psicólogo e neurocientista americano Stephen Porges, estabelece uma relação entre a evolução do sistema nervoso autónomo e a sua influência no comportamento social humano.
Partindo do modelo tradicional do sistema nervoso, defende que a estrutura do nervo se modificou nos mamíferos, passando a ter duas ramificações. Equiparando o sistema nervoso a um veículo, em vez de um acelerador (sistema nervoso simpático, que atua no movimento e na ação) e de um travão (sistema nervoso parassimpático, que atua no relaxamento), passámos a ter dois travões, no nervo do sistema nervoso parassimpático: o dorsal e o ventral, mais recente em termos evolutivos, e cujo papel na interação social foi decisivo para a sobrevivência da espécie.
Na prática, libertar o vago ventral diante de um stressor aumenta a frequência cardíaca, e dá-se a resposta de ataque ou fuga e, se isso não bastar, o sistema de emergência (dorsal) leva à descida abrupta da frequência cardíaca e respiratória e à paralisação muscular (desmaio, congelamento emocional). Conclusão: sugere-se que é possível reduzir a resposta fisiológica através de técnicas corporais e de comportamento, do treino respiratório ao uso de mantras.
Embora os estudos neste campo validem o papel central deste nervo na troca de informação entre o cérebro e os órgãos internos, investigações posteriores evidenciaram que o ramo dorsal do vago tem pouco efeito na frequência cardíaca e que a ramificação ventral não é exclusiva dos mamíferos, razão pela qual a teoria polivagal é vista como um mito por boa parte da comunidade científica.
Simplificar o que é complexo
“Dizer que o nervo vago regula funções vitais e atua na fisiologia de quase todos os nossos órgãos é uma coisa, afirmar que pode ser regulado com intervenções para controlo da ansiedade e promoção de bem-estar é outra”, assegura Albino Maia, psiquiatra e investigador em Neurociência da Fundação Champalimaud e docente na NOVA Medical School.
O médico admite que o risco de estar a construir-se uma ideia falaciosa existe: “Parece-me um racional teórico que confere autoridade a um conjunto de técnicas úteis para as pessoas se sentirem bem, mas carece de informação validada e sustentada.”
Na mesma linha, Margarida Alvelos, especialista em Medicina Interna no Hospital CUF Porto, que acompanha casos com esta “anomalia fisiológica, em que o nervo vago atua numa situação em que não é suposto”, assegura-lhes tratar-se de uma “situação benigna”, mas por envolver o risco de cair e magoar-se, ajuda-os a identificar os sinais prévios ao desmaio e propõe medidas preventivas, não farmacológicas, que podem ser adotadas em qualquer local, quando necessário: “Agachar-se ou contrair os músculos dos braços e pernas para aumentar o retorno venoso, soprar contra a palma da mão, encostada à boca (manobra de Valsalva), que leva o sangue do tórax para o cérebro e evita a perda de consciência, e hidratar-se ou tomar uma bebida isotónica.”
Em pessoas mais velhas, que podem não ter sintomas de pré-desmaio notórios, a médica recomenda o uso de “meia elástica, que comprime as pernas e aumenta o retorno venoso”. É que o corpo fala connosco sempre, mas por vezes tão baixinho que não conseguimos ouvi-lo. Noutras vezes, não queremos mesmo ouvi-lo.
Funções nada vagas
Conheça as regiões do corpo que ficam alteradas quando esta peça-chave que é o nervo vago entra em ação, em situações percebidas como ameaças
Cabeça e pescoço
A sensibilidade ao paladar, o reflexo do vómito, a deglutição e a tosse produtiva ocorrem na orofaringe e na laringe, influenciadas pelo nervo vago.
Coração
Em situações de desmaio, é comum ter bradicardia (redução dos batimentos cardíacos) e, até, assistolia (paragem de alguns segundos) porque o nervo atua na frequência cardíaca.
Circulação
O tónus vascular e a pressão dos vasos sanguíneos sofrem alterações quando há uma estimulação exagerada a nível vagal, que leva à diminuição da pressão arterial.
Pulmões
O nervo vago controla a permeabilidade das vias aéreas e, em situações de stresse ou de risco, a sua atuação traduz-se na constrição dos brônquios.
Sistema digestivo
A produção de sucos gástricos (acidez no estômago), o trânsito intestinal, a secreção de insulina e os níveis de açúcar no sangue são controlados por este nervo.
Sistema urogenital
O controlo das funções da bexiga, do esfíncter urinário e da ereção fica comprometido durante a síncope vasovagal.
Fonte: Renato Oliveira, Hospital da Luz
Lidar com a síncope vasovagal
Saiba o que leva à perda temporária dos sentidos e os seus sinais
Gatilhos mais comuns
Permanecer muito tempo em pé. Ficar exposto a ambientes muito cheios ou com temperaturas elevadas. Passar uma noite em claro. Estar em jejum, embriagado ou desidratado. Receber uma má notícia ou ter um desgosto. Stresse emocional.
O que fazer se lhe acontecer
Perder as forças, ficar com a visão toldada, deixar de ouvir o que se passa à sua volta, sentir tonturas e começar a suar: estes são os sinais para baixar a cabeça, sentar-se ou deitar-se com as pernas elevadas. Respire profundamente e hidrate-se.
Quem tem mais predisposição
Pessoas propensas a estados ansiosos, a ataques de pânico e que sofrem de enxaquecas. Jovens, idosos e mulheres, mais vulneráveis a alterações hormonais. Diabéticos com doença avançada.
Quando procurar o médico
Esta síncope é benigna, mas pode ser confundida com doenças mais graves. Procure o médico se o desmaio for repentino, sem sinais prévios. Quando o episódio é precedido de palpitações ou de uma dor de cabeça forte ou no peito. Quando volta a si e tem a fala arrastada, a boca ao lado ou fica num estado de desorientação ou confusão.