Passaram-se quase 79 anos desde a manhã gelada de janeiro durante a qual Auschwitz-Birkenau, o maior e mais terrível campo de extermínio do regime Nazi, foi libertado. Ainda hoje, os horrores cometidos dentro do campo da morte têm o poder de lançar no silêncio quem encontra algum relato detalhado dos mesmos.
Experiências médicas em humanos, conduzidas pelo chefe da enfermaria Josef Mengele, o “anjo da morte” que decidia quem vivia e quem morria, câmaras de gás, onde mais de um milhão de prisioneiros perderam a vida, e o assassinato de 10 mil crianças com problemas de desenvolvimento físico e cognitivo, por ordem de Carl Schneider, psiquiatra responsável pelo programa de eutanásia estatal, são apenas alguns exemplos que ilustram os inúmeros atos de violência que o regime Nazi cometeu contra judeus, sinti e pessoas de etnia cigana, com deficiência ou doenças psiquiátricas, prisioneiros políticos, prisioneiros de guerra e pessoas LGBTQ, entre outros.
Considerando que “uma característica distintiva e perturbadora destas atrocidades é o importante papel que os profissionais de saúde desempenharam na formulação, apoio e implementação de políticas desumanas e, muitas vezes, genocidas”, 90 anos após a ascensão de Hitler ao poder, a revista cientifica Lancet criou a Comissão para a medicina, Nazismo e Holocausto, a qual publicou um documento com vários relatos das mesmas.
O objetivo é que os médicos e estudantes de medicina do presente não esqueçam o horror do passado e aprendam com a história, munindo-se de conhecimento que os ajude a “enfrentar o anti-semitismo, o racismo e outras formas de discriminação”, e a “abraçar e defender a nossa humanidade partilhada nos seus papéis profissionais e como organizações globais”.
O artigo pretende ser “um compêndio confiável e atualizado do papel da medicina e dos profissionais de saúde no desenvolvimento e implementação da agenda antissemita”, e surge numa altura em que o mundo parece, mais do que nunca, fragmentado e polarizado, política e ideologicamente.
É que, tal como sublinham os autores, “os profissionais de saúde e as sociedades contemporâneas, em todo o mundo, têm sido confrontados com múltiplas crises: a pandemia da Covi-19; um aumento evidente do anti-semitismo, dos sentimentos anti-imigrantes e de outras formas de racismo e discriminação; alterações climáticas; e guerras, como as de Israel, Gaza, Síria, Ucrânia e Iémen”.
Desmistificar crenças
Além de recordar o que não deve ser feito, a publicação preocupa-se ainda em desmistificar várias crenças relacionadas com os crimes cometidos pela ciência e pela medicina do regime nazi.
Em primeiro lugar, os autores procuram consciencializar médicos e pacientes que tais crimes não foram obra de alguns profissionais de saúde mais radicais, como muitos acreditam, mas resultado de uma classe médica que aderiu fortemente aos ideais do governo.
Segundo o relatório, no final da guerra, 65% dos médicos estava afiliado ao NSDAP, o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães
Segundo o relatório, no final da guerra, 65% dos médicos estava afiliado ao NSDAP, o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães.
Outro mito que cai por terra é a ideia de que não foi a ciência alemã, mas uma espécie de pseudociência que encontrou o apoio dos nazis.
O relatório recorda como grande parte da investigação realizada durante o regime foi publicada em revistas científicas e algumas das descobertas foram lidas e aplicadas em todo o mundo, ao longo de décadas, acabando por serem integradas no conhecimento médico geral, muitas vezes ignorando a origem ou métodos pouco ortodoxos usados para chegar aos resultados.
Por exemplo, as experiências mortíferas de altitude e hipotermia, realizadas em Dachau, foram partilhadas com a indústria de aviação dos EUA. “Vários dos cientistas envolvidos nesta pesquisa, incluindo Siegfried Ruff e Hubertus Strughold, foram recrutados imediatamente após a guerra pela Força Aérea do Exército dos EUA para trabalhar no Centro Aeromédico dos EUA, em Heidelberg”, revela a publicação.
Construir um futuro melhor
Apesar de todos os alertas, o relatório enfatiza a importância de não demonizar apenas a ciência e medicina alemãs desta época, uma vez que estas não foram as únicas a serem coniventes com um determinado governo na prática de genocídios. Apenas um dos casos mais bem documentados.
Só através da compreensão e da reflexão sobre a história é que podemos compreender plenamente o presente e moldar um futuro melhor
Comissão para a medicina, nazismo e holocausto
Com os olhos postos no futuro, os autores recordam, por fim, que, se muitas das atrocidades cometidas pelo regime nazi acabaram por conduzir às primeiras normas internacionais sobre o tratamento de pacientes, especificamente ao consentimento informado para ensaios em humanos, é dever dos médicos do presente impedir que tal memória se perca, sob o perigo se certos limites voltarem a ser ignorados.
“Só através da compreensão e da reflexão sobre a história é que podemos compreender plenamente o presente e moldar um futuro melhor”, defendem.