Maria João Santa Maria estava grávida de oito meses quando, aos 23 anos, descobriu que tinha o vírus da imunodeficiência humana (VIH) e sentiu o mundo desabar-lhe em cima. O bebé nasceu com o vírus, mas foi submetido a um tratamento durante quatro semanas e ficou livre da doença.
A “sentença de morte” chegou dois anos depois quando Maria João passou ao estádio de sida e uma médica lhe deu seis meses de vida. A notícia foi avassaladora. “Entrei logo em pânico. O que mais queria era ver o meu filho entrar na escola…” Estávamos nos anos 90 e Maria João viveu para ver o filho crescer.
Uma década antes, em 1986, muito pouco se sabia sobre o vírus e a doença que provoca, a sida. “A ciência ainda estava numa fase de evolução e as pessoas eram internadas no hospital já num estado terminal”, recorda Amílcar Soares, 67 anos, fundador da Associação Positivo, onde Maria João também trabalha.
Foi o que aconteceu ao cantor António Variações, provavelmente a primeira figura pública a morrer com a doença em Portugal, em 1984. Chegavam notícias dos primeiros casos nos Estados Unidos da América e a sida parecia algo muito distante, associada à comunidade gay. “Era uma coisa que só acontecia aos outros”, frisa Amílcar, que foi “apanhado” com 31 anos. Lembra-se de que “não tinha qualquer sintoma, mas como era dador de sangue e pertencia a um grupo de risco”, resolveu fazer o rastreio que acusou VIH.
Primeiro foi o choque, a seguir as dúvidas e incertezas a nortearem os pensamentos. “Não sei como fui infetado. Só sei que foi transmitido sexualmente, que fui descuidado. Fiz asneira e não adiantava chorar sobre leite derramado e culpar alguém”, recorda 36 anos depois.
Amílcar travou uma luta contra o tempo, tal como a amiga Maria João, sem saber como o seu estado de saúde iria evoluir. Era tempo, sim, de viver cada dia como se fosse o último e com qualidade. “Tive de arregaçar as mangas.” Estudou escultura e ocupou-se com mil e uma coisas. O tempo foi passando e sobreviveu, ao contrário do companheiro que não resistiu à doença.
Também Luís Mendão se viu a braços com a face da morte, aos 38 anos, muitos sonhos por concretizar e uma vida pela frente que ficou em suspenso depois de fazer uma bateria de exames e descobrir que estava doente. Ainda ficou internado durante 40 dias em estado avançado da doença.
À época coproprietário de uma discoteca e de um restaurante, Luís quis viver ao máximo e da “melhor forma possível” o tempo que lhe restava. “Não fiquei aterrorizado porque ia morrer, dentro de seis meses a um ano, que era a esperança de vida de um doente com VIH/sida, segundo a literatura científica.”
O fundador do Grupo de Ativistas em Tratamentos (GAT) pôs logo em marcha uma lista de desejos que tinha em mente. Primeiro, quis ter as finanças em dia para fazer um pé de meia e deixar outro tanto a familiares. Depois, despediu-se dos amigos em Portugal e viajou para França, Itália e EUA para abraçar outros que viviam nesses países. Precisou de forças para o fazer, porque sentia-se quase sempre “exausto, como se tivesse 80 anos”. Precisou, por isso, da ajuda de uma amiga que veio da Polónia para os seus últimos dias de vida.
“Muitos de nós tínhamos feito o luto da própria morte.” E, de repente, “parecia que ressuscitávamos”, nota, lembrando o dia em que, ainda incrédulo, perguntou ao médico: “Pensava que ia morrer no verão e afinal ainda estou vivo. E agora, o que vou fazer à minha vida?”
O tratamento que salva
Estas três histórias, contadas na primeira pessoa, são a prova de como a doença, que já foi considerada uma epidemia, evoluiu ao longo dos anos e o quanto a ciência trouxe de esperança e de vida a estes doentes. Só ainda não trouxe a cura.
“Enquanto, há 40 anos, ter um diagnóstico de VIH era uma sentença de morte e a preocupação era tratar todas as chamadas infeções oportunistas que os doentes tinham, agora tornou-se uma doença crónica, com uma carga viral indetetável, que tem tratamento e com a qual as pessoas podem viver”, assegura Mafalda Guimarães, especialista de Medicina Interna no Hospital CUF Cascais.
“Nos anos 1980, não havia nenhum tipo de tratamento eficaz. Só no final dos anos 1990 é que surgiram as terapêuticas triplas que permitiram uma supressão do vírus de forma prolongada e sustentada, possibilitando que as pessoas afetadas pudessem recuperar a imunidade”, destaca Margarida Tavares, diretora nacional do programa de saúde prioritário para a área das Infeções Sexualmente Transmissíveis e Infeção pelo Vírus da Imunodeficiência Humana.
Luís Mendão foi “um dos primeiros a experimentar aquele tipo de tratamento tripartido que surgiu em 1996”. E sobreviveu. Mas viver com a doença não tem sido fácil. “Estes 22 anos têm sido pesados”, desabafa. “Mesmo assim, sou um osso duro de roer”, diz, entre risos.
Na realidade, o “VIH é uma infeção como outra qualquer em que temos tratamento. Não se transmite a ninguém, porque a carga vírica não detetada não transmite”, considera Rosário Serrão, responsável do Hospital de Dia das doenças infeciosas do Centro Hospitalar Universitário São João, no Porto. Ou seja, explica a médica, “conseguimos a supressão biológica e isto faz com que a doença não progrida se o doente cumprir o tratamento direitinho”.
Logo, garante, por sua vez, Mafalda Guimarães, “os doentes não precisam de utilizar preservativo com um companheiro ou companheira que seja regular, porque não vão transmitir a doença”.
Envelhecer com o vírus
Ainda assim, o VIH é um grave problema para a saúde pública. É unânime, entre as três médicas, a necessidade de deteção precoce com rastreios para que não haja nem risco de vida para o doente nem perigo de transmissão a outras pessoas.
Em todo o mundo existem 38 milhões de pessoas com VIH/sida, avança a médica Mafalda Guimarães. Os primeiros casos relatados nos EUA datam de 1981, em doentes utilizadores de drogas injetáveis e homens que fazem sexo com outros homens.
De acordo com a PORDATA, o primeiro caso, em Portugal, surgiu em 1983; no ano seguinte já havia três infetados; em 1985, 30 e em 1989 o número disparou para 200. O maior número de novos casos (1 289) ocorreu em 1999.
De acordo com o relatório Infeção VIH e VIH/sida em Portugal – 2020, da Direção-Geral da Saúde e do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, o número de novas infeções por VIH continua a descer, tendo-se registado, durante o ano 2019, “778 novos casos de infeção por VIH, o que corresponde a uma taxa de 7,6 casos por 105 habitantes”. Segundo o mesmo documento, “a maioria correspondia a homens (2,3 casos por cada infeção comunicada em mulheres); a mediana das idades, à data do diagnóstico, era de 38 anos”.
Agora, desde que cumpram a medicação, os doentes têm uma vida normal e com qualidade. “Hoje em dia, a nossa dificuldade não é tratar o VIH, porque a medicação é altamente eficaz e conseguimos pôr o vírus suprimido, ou seja, sem se multiplicar”, sublinha a especialista de Medicina Interna no Hospital CUF Cascais. “A nossa dificuldade é, sim, gerir outras doenças – como diabetes, hipertensão, enfarte ou cancro –, que são consequência do envelhecimento do doente, porque é preciso avaliarmos as interações entre as medicações.”
Mas, lamenta, “continuamos a ter doentes diagnosticados na fase de sida”. Daí a importância de a doença ser detetada precocemente. “Numa fase inicial, quando o vírus entra no organismo, muitas vezes pode não dar sintomas nenhuns ou então o problema é que pode ser confundido com um quadro quase gripal, com dores no corpo e de garganta, febre, manchinhas no corpo, aumento dos gânglios linfáticos”, descreve a médica.
Aprender a viver de novo
Cada dia que passa é uma incerteza e, em simultâneo, uma vitória para estes doentes que achavam que não iriam sobreviver e, afinal, tiveram de aprender a viver de novo. “Não foi fácil refazer uma vida perto dos 40 anos, pois parecia uma coisa que ia além das minhas forças. Tive de me habituar à ideia de que tinha de o fazer e fui trabalhar para a Abraço”, conta Luís Mendão, que chegou a tomar 32 comprimidos por dia. Agora, só toma três. Luís ainda se lembra de levar uma minigeladeira nas viagens de despedida dos amigos que fez ao estrangeiro, porque alguns dos medicamentos tinham de ser conservados no frio.
Já Amílcar Soares toma um comprimido por dia depois de ter estado em estádio de sida quando fez quimioterapia para o linfoma que lhe foi diagnosticado. Chegou a tomar AZT e nunca teve efeitos secundários.
A colega Maria João garante que viveu “um pesadelo” quando tomou 32 comprimidos diários. “Causaram-me imensos efeitos secundários, desde perder o cabelo a ter feridas na pele, diarreias, vómitos e descalcificação óssea. As pessoas não imaginam o sofrimento que era viver com a doença.”
Carregava o coração nas mãos: teve duas vezes tuberculose e ainda hepatite C, e sentia na pele o envelhecimento progressivo da doença. “Estive dez anos a lutar pela vida.” Agora, aos 49, Maria João tem uma vida normal desde que o vírus ficou controlado em 2005.
Foi numa partilha de seringas para consumo de droga que terá ocorrido a transmissão do vírus. Na altura havia muito pouca informação sobre a doença e Maria João e o marido sentiram fugir-lhes o tapete dos pés. “Receava que, um dia, o meu filho fosse discriminado e penalizado só porque a mãe tinha partilhado uma seringa ao consumir droga”, conta hoje, vida refeita, com o filho já adulto sem VIH e com netos a encher-lhe a casa de correrias e gargalhadas.
Ainda se lembra de quando contou ao filho que era seropositiva, tinha ele 8 anos, e o miúdo lhe respondeu: “Oh mãe, eu já desconfiava!” Suspirou de alívio, porque, afinal de contas, o assunto “nunca foi tabu” nas conversas de casa. “Estou vacinada contra a discriminação.”
O peso do estigma
Desde então muito mudou, ainda que continue a viver-se sob a sombra do estigma e da discriminação. “Decidi dar a cara para ajudar outras pessoas a não serem discriminadas, porque o fui ao longo da minha vida, até mesmo no Serviço Nacional de Saúde, nomeadamente quando estive internada, em 2010, e era a única da enfermaria a comer com talheres de plástico”, desabafa Maria João. “Alguns dentistas recusaram prestar-me cuidados médicos. Tinha aspeto de utilizadora de droga.”
A médica Mafalda Guimarães concorda que, “antigamente, havia muito preconceito e só se falava nos grupos de risco, como os utilizadores de drogas injetáveis e os homossexuais, além da via de transmissão através das transfusões de sangue”. Agora, prossegue a especialista, “já não falamos em grupos de risco, mas sim em comportamentos de risco, que é qualquer relação sexual sem a utilização de preservativo”.
Outra via de transmissão que acontecia, há uns anos, era da mãe para o bebé mas, “agora, as grávidas são submetidas a tratamento e, por isso, o vírus fica indetetável e não transmite”. Mais, divulga a médica: “Em 95% das vezes, a transmissão é por via sexual e em pessoas que nem sequer sabiam que era portadoras de VIH e não estão em tratamento.”
Após seis meses a um ano de estar submetida a tratamento, a pessoa seropositiva tem a carga viral indetetável. Pode, por isso, ter uma vida sexual normal.
Daí a importância de, numa primeira consulta, desmistificar mitos perante o impacto do diagnóstico sentido pelo doente. “Para alguns é um choque, porque as pessoas ainda associam a sida a uma doença fatal”, refere a médica. Passou a ser uma doença crónica em que os doentes podem viver com qualidade e sem sofrimento.
Os avanços da Ciência
Ainda não existe cura para o VIH/sida, mas tem havido avanços nesse sentido. E tem-se caminhado para um novo paradigma ao nível da terapêutica, para que os doentes tenham uma maior taxa de sobrevida e melhor qualidade de vida. Mais recentemente, uma equipa de cientistas afirma ter curado a terceira pessoa com o vírus depois do “paciente de Berlim” e do “doente de Londres”. A mulher, batizada de “paciente de Nova Iorque”, recebeu sangue do cordão umbilical de um bebé com resistência genética ao VIH e também células estaminais de um dador adulto.
“O próximo passo – e estamos à espera que aconteça para o ano – será uma injeção ministrada de dois em dois meses ao doente, no hospital”, adianta Rosário Serrão, responsável do Hospital de Dia das doenças infecciosas do Centro Hospitalar Universitário São João. O injetável poderá substituir a toma diária de um comprimido e já está a ser ministrado noutros países europeus, segundo a médica.
A 18 de maio, assinala-se o Dia Mundial da Vacina Contra a Sida para consciencialização da doença. Mas ainda não existe a vacina. Em 2021, uma vacina experimental, baseada na tecnologia do mRNA, obteve resultados satisfatórios em ratos e macacos, de acordo com dados publicados na revista científica Nature Medicine. Os resultados demonstraram que a vacina era segura e que provocou as desejadas respostas imunitárias celulares e de anticorpos contra um vírus semelhante ao HIV. O caminho para a cura pode estar próximo.
Marcos históricos da sida
1930
Os cientistas acreditam que, nesta década, o VIH-1 passou dos chimpanzés para os seres humanos, provavelmente através de caçadores que tiveram contacto com o sangue dos animais.
1981
A sida é identificada como doença nos Estados Unidos da América. Os primeiros casos confirmam-se num grupo de pessoas toxicodependentes e em homens que fazem sexo com outros homens. Desconhece-se o vírus que a causa.
1983
O francês Luc Montagnier, Prémio Nobel de Medicina em 2008, e a equipa do Instituto Pasteur isolam um vírus ao qual inicialmente chamam de VAL (vírus associado à linfadenopatia), e que mais tarde é identificado como o VIH (vírus da imunodeficiência humana).
1984
Morrem o cantor português António Variações e o filósofo francês Michel Foucault.
1985
Rock Hudson, um dos galãs de Hollywood, morre de complicações de saúde agravadas pelo vírus da imunodeficiência humana.
1991
Freddie Mercury, vocalista dos Queen, morre dez anos após ter contraído HIV.
2008
Timothy Ray Brown, batizado de “paciente de Berlim”, é o primeiro doente com HIV curado, que viveu sem o vírus durante 12 anos, até morrer com cancro há dois. Recebeu transplante de medula óssea de doador com mutação que impede a infeção.
2019
Adam Castillejo, conhecido como “paciente de Londres”, é considerado curado do HIV. Recebeu transplante de medula óssea de doador com mutação que impede a infeção.
2021
Vacina experimental contra a sida, baseada na tecnologia mRNA, obtém bons resultados em ratos e macacos, de acordo com dados de cientistas publicados na revista Nature Medicine.
2022
Pela primeira vez, uma mulher é considerada curada do VHI depois de submetida a um transplante (ficou conhecida como “paciente de Nova Iorque”). Recebeu sangue do cordão umbilical de um bebé com resistência genética ao vírus e também de células estaminais de um dador adulto.